Título: Até inflação baixa preocupa o Fed
Autor: Edmund L. Andrews
Fonte: O Estado de São Paulo, 16/06/2006, Economia & Negócios, p. B3

Há 25 anos, qualquer indício de que os preços básicos ao consumidor estavam subindo menos de 3% por ano teria sido recebido pela maioria das pessoas como uma notícia impossivelmente boa.

Paul A. Volcker, o presidente do Federal Reserve (Fed, o banco central americano) considerado responsável pela interrupção da espiral de inflação de dois dígitos que começou nos anos 70, viu os preços ao consumidor subirem menos de 3% só em um ano de mandato.

Alan Greenspan, que presidiu o Fed por 18 anos depois de Volcker, teve apenas cinco anos em que sua medida preferida da inflação foi mais baixa que o ritmo alcançado em maio.

Mas, quando o governo informou, na quarta-feira, que o núcleo dos preços ao consumidor - um indicador de tendências básicas considerado mais confiável que o índice geral, porque exclui os preços voláteis dos alimentos e da energia - avançou 0,3% em maio e estava 2,4% mais alto que 12 meses antes, os analistas receberam os números como uma má notícia.

E, embora o mercado de ações tenha avançado quarta-feira, a tendência tem sido de perda. O declínio ocorre principalmente porque os investidores estão convencidos de que o Fed está prestes a responder à alta dos preços com outra dose de remédio antiinflacionário - o 17º aumento das taxas de juros de curto prazo em dois anos - e pode não parar por aqui.

Um observador do passado poderia ser perdoado por perguntar: por que um índice de inflação básico de menos de 3% é tão alarmante? A resposta, dizem agora os economistas, é que a experiência lhes ensinou que até mesmo um nível relativamente modesto de inflação pode logo ficar descontrolado se não for eliminado no início.

Depois de assumir a presidência do Fed neste ano, Ben S. Bernanke indicou acreditar que o índice básico de inflação não deveria passar de 2% ao ano. Essa meta rígida, apoiada pela maioria dos outros responsáveis pela política do Fed, reflete uma grande mudança de atitude ante os riscos da inflação.

Assim como a depressão dos anos 30 marcou uma geração inteira de americanos, a estagflação dos anos 70 e a recessão do início dos 80 marcaram uma geração inteira de economistas. "É uma completa mudança de regime", disse Barry P. Bosworth, conselheiro econômico do presidente Jimmy Carter nos piores anos de inflação alta.

"Na época, discutíamos sobre a troca entre desemprego e inflação e não éramos claros sobre qual era mais importante", explicou. "Hoje, não há dúvida: não se pode dirigir a economia sem a primazia da meta da estabilidade de preços." Hoje, a meta do Fed é reduzir as "expectativas de inflação", mesmo que o efeito possa ser a desaceleração de uma economia que já parece se desacelerar, o envio de outro arrepio gélido ao mercado imobiliário e possivelmente o aumento do desemprego. Tudo isso apesar de os salários por hora mal terem acompanhado os preços ao consumidor, que, incluindo os custos de energia e alimentos, subiram 0,4% em maio, deixando o índice 4,2% mais alto que um ano antes.

Mas o esforço para manter a inflação tão baixa não escapa à controvérsia. Alguns argumentam que o Fed deveria tolerar um limite um pouco mais alto, temendo que, se o banco central estabelecer uma zona de conforto estreita, entre zero e 2%, haja risco de acontecer algo pior - uma verdadeira deflação - no caso de a economia sofrer algum solavanco no caminho.

Por outro lado, observam especialistas, a atual condição econômica dos Estados Unidos é muito diferente dos anos 70, ou mesmo do fim dos 60, quando a inflação começou a subir.

A produtividade - a quantidade de trabalho requerida para produzir uma quantidade específica de bens ou serviços - aumenta num ritmo mais de duas vezes maior que nos anos 70. Os salários, em geral, têm subido bem mais lentamente que a produtividade, e os lucros corporativos são altos.

E até mesmo a alta recente dos preços da energia - 23,6% no último ano - teve um impacto sobre a economia muito menor que altas similares nas décadas anteriores. "A idéia de que corremos perigo de estagflação é absurda", afirmou David M. Jones, economista que escreve sobre o Fed há várias décadas.

Mas Stephen H. Axilrod, conselheiro de política monetária na gestão Volcker, advertiu que a credibilidade do Fed está em questão. Depois de 18 anos de Greenspan, Bernanke, o novo presidente, permanece relativamente desconhecido e inexperiente. Além disso, a inflação já ultrapassou a zona de conforto apontada por Bernanke para a estabilidade de preços.

"Eles estão à beira de perder a credibilidade", disse Axilrod. "Isto lhes deixa num imenso dilema." O que preocupa os funcionários do Fed não é o paralelo entre o presente e a estagflação dos anos 70, e sim os paralelos com os primeiros impulsos de inflação por volta de 1966.

Naquele momento, como hoje, os aumentos dos preços ao consumidor pareciam suaves no início e surgiam depois de anos de relativa tranqüilidade. O núcleo da inflação avançou de 2,4% em 1966 para 3,6% em 1967 e 4,6% em 1968. Exceto durante os períodos imediatamente posteriores às recessões de 1970 e 1974, porém o índice de inflação básico continuou a subir quase todo ano e atingiu o pico de mais de 12% em 1980. A inflação geral chegou a quase 15%.

Existem outros paralelos. Naquela época, como agora, o aumento inicial da inflação coincidiu com uma alta dos gastos de guerra e crescentes déficits orçamentários. Nos anos 60, o presidente Lyndon B. Johnson se envolveu no Vietnã e criou grandes programas antipobreza. Nos últimos cinco anos, o presidente Bush embarcou na guerra no Iraque e promoveu grandes cortes de impostos.

E, assim como os preços do petróleo dispararam no início dos anos 70 e no início dos 80, eles agora atingem altas históricas e giram em torno de US$ 70 o barril. Mas muitos economistas, incluindo aqueles que enfrentaram os piores anos da estagflação, argumentam que as diferenças entre passado e presente são pelo menos tão profundas quanto as semelhanças.

A maior diferença básica está no crescimento da produtividade. Ele baixou para cerca de 1% do início dos anos 70 ao início dos 90. Mas o ritmo ao longo da última década foi mais que o dobro. Em alguns anos, ficou numa média de mais de 4%.

O crescimento mais rápido da produtividade permite o crescimento mais rápido dos salários sem alimentar a inflação. Mas, enquanto os salários aumentaram várias vezes mais rápido que a produtividade nos anos 70, os aumentos do salário ficaram atrás do crescimento da produtividade em grande parte dos últimos cinco anos.

O contraste entre as demandas por salários mais altos hoje e há 30 anos é claro. De 1971 a 1975, os salários por hora aumentaram quase 40%, segundo o Departamento de Estatística do Trabalho. Mas a produtividade do trabalho aumentou apenas 6,5% no mesmo período. Em contraste, no último ano, os salários aumentaram cerca de 3,7%, enquanto a produtividade aumentou cerca de 3%.

A grande questão agora é se os preços em alta levarão as pessoas - trabalhadores e investidores - a elevar suas expectativas de inflação a longo prazo.

"O desejável é uma situação na qual a inflação seja tão baixa que ninguém lhe dê muita atenção", disse Charles L. Schultze, economista do Instituto Brookings que chefiou a equipe de conselheiros econômicos do presidente Carter. "Não é desejável que a inflação seja embutida no planejamento das pessoas. Assim que isso acontece, os aumentos num setor passam para outro e então para os salários. E isto não traz nenhum benefício aos trabalhadores, pois a inflação começa a subir ainda mais rápido."

De fato, Greenspan usou quase a mesma regra informal para caracterizar a estabilidade de preços. Em vez de sugerir um teto numérico para a inflação tolerável, ele definiu seu objetivo como o ponto em que as expectativas de inflação não têm impacto nas decisões das pessoas de comprar, poupar ou investir.

A experiência do fim dos anos 90 e do início da década seguinte demonstrou que a inflação baixa e estável forneceu a base para um boom econômico e foi obtida com menos sofrimento que o temido pelos economistas. Aqueles poucos anos sob Greenspan estabeleceram novo padrão nos mercados e entre os responsáveis pelas políticas econômicas.

"A lição", disse Jones, autor de vários livros sobre a política do Fed, "é que é preciso ter expectativas de inflação baixas e estáveis." Antigos e atuais funcionários do Fed dizem que até mesmo uma inflação suave tem alto custo. Se os preços sobem 2% ao ano, dobram a cada 36 anos. Se sobem 3%, dobram em 21 anos - o suficiente para uma diferença significativa no planejamento da aposentadoria.

Ainda assim, vários analistas experientes afirmam que a fixação de Bernanke numa meta de inflação de no máximo 2% pode ser rígida demais, embora o Banco Central Europeu e o Banco da Inglaterra tenham estabelecido objetivos similares.

Em vez de fixar um limite rígido de 2% para o núcleo da inflação, argumenta Edward Yardeni, um economista independente, "ele deveria desencadear uma cuidadosa avaliação de todos os indicadores da inflação quando fosse excedido".

Hoje, as pressões inflacionárias se acumulam em várias frentes: preços altos de mercadorias, o desejo dos trabalhadores de se recuperar depois de dez anos de crescimento salarial lento e até mesmo pressões dos trabalhadores chineses para ficar com uma fatia maior do crescimento da China.

Isso aumenta o desafio para o Fed e os BCs da Europa e do Japão. "Nos últimos 10 ou 20 anos, os bancos centrais do mundo desenvolvido tiveram o luxo de trabalhar num jardim sem muitas ervas daninhas", afirmou Axilrod, o ex-funcionário do Fed. "Mas hoje as ervas daninhas estão crescendo."