Título: Frouxidão fiscal
Autor: Martus Tavares
Fonte: O Estado de São Paulo, 26/06/2006, Espaço Aberto, p. A2

O problema fiscal no Brasil hoje pode ser dividido, para fins analíticos, em três componentes: as questões de curto e médio prazo decorrentes do crescimento dos gastos correntes, as questões estruturais do financiamento das previdências pública e privada e as relacionadas à necessidade de manutenção dos atuais níveis de superávits primários. Evidentemente, todas essas fontes de perturbações estão ligadas umas às outras. E todas elas são fatores inibidores da redução da carga tributária no médio prazo.

A questão do financiamento do déficit previdenciário já é bastante grande e vai tornar-se ainda maior à medida que se forem completando os efeitos do aumento da expectativa de vida da população nas contas da previdência. Inevitavelmente, a solução desse problema passa por grandes alterações dos atuais regimes de previdência, o que exigirá mudanças constitucionais.

O terceiro conjunto de problema nos remete às questões relacionadas à razão dívida/PIB e aos rebatimentos dinâmicos das trajetórias das taxas de juros e de câmbio. Já se foram oito anos de elevados superávits primários sem, contudo, reduzir o peso da dívida no produto interno. O lado positivo é que contamos hoje com uma âncora institucional, a Lei de Responsabilidade Fiscal, que tem tido o mérito de evitar a deterioração geral das finanças públicas, em particular em ano eleitoral como este.

É importante enfatizar que o famoso "choque de gestão" pode produzir excelentes resultados do ponto de vista da eficácia e da eficiência, mas não produz ganhos quantitativamente relevantes para resolver, ou mesmo atenuar, as questões estruturais associadas a esses dois conjuntos de questões.

Neste artigo vou analisar apenas as questões relativas ao crescimento desordenado dos gastos correntes. A esse respeito chamo a atenção para o artigo de Ribamar Oliveira Nunca se gastou tanto (5/6, B2), que mostra, de maneira incontestável, a frouxidão que tem caracterizado a gestão da política fiscal.

Suportado por uma carga tributária crescente (39% do PIB ao final de 2005), que rouba toda a competitividade dos produtos brasileiros, o governo segue ampliando seus gastos. O mais grave é que tem aumentado os gastos correntes e reduzido os investimentos, justamente os que deveriam ser elevados.

Nesse contexto, é legítima a preocupação com novas elevações da carga tributária para financiar o atual crescimento dos gastos. O raciocínio é simples: anualizados os gastos contratados no primeiro semestre deste ano e mantida a meta de superávit primário, é necessário coletar mais impostos para financiar a frouxidão mencionada. Ou, mantido esse padrão de gestão, é possível que os investimentos sejam reduzidos ainda mais, podendo chegar a zero!

É urgente a necessidade de refundar o regime de austeridade fiscal, que respeita as condições de financiamento do Estado, bem como a de mudança na condução da política fiscal. Afinal, os recentes aumentos dos gastos decorreram de iniciativas do Executivo. Desta vez não se pode culpar a Constituição de 1988. Basta ter a responsabilidade fiscal como princípio norteador das decisões diárias, por exemplo, na hora de fixar o valor do salário mínimo, de definir metas e valores dos programas de assistência social, de estabelecer a remuneração dos servidores e dos membros dos Poderes, entre outros.

A nossa cultura fiscal é ainda muito débil. Assistimos passivamente ao crescimento dos gastos sem nos darmos conta de que seremos chamados a pagar o aumento de despesa no momento seguinte. Reclamamos continuamente da carga tributária e não questionamos nem nos opomos aos aumentos dos gastos correntes, como estamos vivenciando nos últimos meses. Esquecemos que, em finanças, os vasos são comunicantes e o dinheiro não tem cor. O real que se gasta com aumento de salário dos servidores é o mesmo real que deixa de ir para o investimento em infra-estrutura.

É inaceitável que os gastos correntes do governo federal cresçam mais de 1% do PIB em apenas um ano, representando um aumento de mais de R$ 20 bilhões. Esse montante daria para duplicar os investimentos ou reduzir em 1 ponto porcentual a carga tributária. Em ambos os casos a contribuição para o crescimento do País seria muito maior.

É inadmissível que se ampliem os gastos correntes em detrimento dos investimentos em infra-estrutura necessários para a sustentabilidade do crescimento. Gastos assistencialistas não só concorrem financeiramente com os investimentos como não promovem uma justiça social sustentável. Ao contrário, para assegurar oportunidades e inclusão social é necessária a ampliação dos investimentos em infra-estrutura, educação e saúde e a manutenção de uma política macroeconômica consistente.

A conclusão destes comentários deve ser a de que existe um espaço para melhorar a gestão da política fiscal sem recorrer a reformas constitucionais ou mesmo aprovação de leis. A refundação do regime de austeridade requer simplesmente: uma redução seletiva e inteligente dos gastos correntes, um planejamento e uma alocação estratégica dos parcos recursos destinados aos investimentos e uma melhoria na gestão para ampliar os resultados e aumentar a eficácia e a eficiência da ação do Estado. A propósito, em relação à melhoria da gestão, a Fiesp e a Bovespa firmaram uma parceria e contrataram a FGV-SP para elaborar um conjunto de propostas, a partir das melhores práticas de gestão pública, que será apresentado à administração que assumirá a direção do País em janeiro de 2007. Minha experiência de governo sugere que esse conjunto de iniciativas, se posto em prática, é capaz de produzir, no médio prazo, benefícios em termos de ampliação dos serviços públicos, redução da carga tributária e elevação dos investimentos. Evidentemente, isso não dispensa o enfrentamento das questões estruturais mencionadas acima.

Martus Tavares, vice-presidente-executivo da Fiesp, foi ministro do Planejamento,Orçamento e Gestão e secretário de Economia e Planejamento do Estado de São Paulo