Título: Flagrante da crise da Justiça
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Fonte: O Estado de São Paulo, 26/06/2006, Notas e Informações, p. A3

Prova chocante da confusão administrativa reinante nas instituições judiciais brasileiras acaba de ser revelada pelo desembargador Luiz Pantaleão, um dos 30 juízes mais antigos do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), que, em ofício ao presidente da corte, Celso Limongi, com cópia para a presidente do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ministra Ellen Gracie, comunicou que o antigo Tribunal de Alçada Criminal, hoje extinto, deixou de cadastrar cerca de 16 mil processos sob sua responsabilidade, entre março e dezembro de 2004.

O fato é extremamente grave e somente foi descoberto quando, por determinação da Emenda Constitucional nº 45, o Tribunal de Justiça teve de incorporar os dois Tribunais de Alçada Cível e o Tribunal de Alçada Criminal então existentes. Entre os mais de 16 mil processos não cadastrados por esta última corte, muitos envolvem pedidos de habeas-corpus, interesses de réus presos à espera de julgamento, petições de condenados que têm direito ao regime de progressão por já terem cumprido um sexto da pena e demonstrado bom comportamento, e até casos de presos com a pena já integralmente cumprida, à espera de ordem de soltura.

Segundo o desembargador Pantaleão, como a Constituição admite a prisão provisória desde que ela "não afronte o princípio da presunção de inocência e da celeridade procedimental", a situação mais dramática é a dos presos que até agora não puderam ser julgados por causa do congestionamento da Justiça. "Por força da gravíssima irregularidade apontada, muitos réus, então apelantes, como se já não fossem insuportáveis as agruras do sistema penitenciário estadual, ainda contando com precárias carceragens de distritos policiais, não estavam obrigados a arcar com os ônus de problemas que, sim, tinham sido criados pelo Judiciário, eis que, por razões a que não tinham dado causa, embora presos provisoriamente, não tiveram suas apelações julgadas, tudo restando paralisado", afirma o desembargador no ofício.

Em tese, todos esses réus poderiam estar em liberdade. "Estavam eles submetidos a constrangimento ilegal, correndo, em face dos constantes motins e rebeliões, o risco de, não bastassem as violências à honra, dignidade e liberdade sexual, serem assassinados, talvez tendo, como eventuais vítimas de decapitação, suas cabeças exibidas ao público por companheiros de presídio", diz Pantaleão. Para afastar esse risco, ele invocou o princípio constitucional de que todo cidadão é inocente até o trânsito em julgado de sentença condenatória e ordenou a libertação dos réus que permaneciam presos "por inexplicável e inaceitável excesso de prazo".

Trata-se de uma iniciativa corajosa, que vem sendo apoiada por juristas e criminalistas . No entanto o problema das injustiças causadas pela incompetência administrativa do Tribunal de Alçada Criminal somente estará equacionado quando o TJSP, por sua corregedoria, apurar de quem foi a responsabilidade pelo não cadastramento dos 16 mil processos e aplicar as sanções previstas por lei. E isso não será fácil, pois a tendência dos órgãos de fiscalização e controle do Judiciário, que são integrados por magistrados, sempre foi de atuar de modo leniente e corporativo na fiscalização da atuação de colegas.

Evidentemente, como os demais tribunais brasileiros, a Justiça paulista não está imune a essa prática. O próprio desembargador Luiz Pantaleão lembra que, apesar de ter denunciado o caso aos seus superiores há muito tempo, a cúpula do TJSP não tomou até hoje qualquer providência para investigar o ocorrido. Foi por esse motivo, diz ele, que mandou uma cópia de seu ofício ao CNJ e tornou pública a denúncia, lembrando que uma das causas das rebeliões nas prisões paulistas é a revolta dos presos contra o desprezo do Judiciário pelos seus direitos.

Qualquer que venha ser a resposta do TJSP a essa grave acusação e as medidas que venham a ser tomadas pelo CNJ, para obrigar a Justiça estadual a explicar sua omissão nesse caso, o simples "esquecimento" de mais de 16 mil ações no Tribunal de Alçada Criminal permanecerá como uma denúncia irrefutável do caos administrativo que reina em muitos tribunais.