Título: O grande roubo de terras na China
Autor: Jonathan Watts
Fonte: O Estado de São Paulo, 04/06/2006, Internacional, p. A26

Confisco de áreas rurais para 'desenvolvimento' causa maior surto de violência no campo desde a Revolução Cultural

Quando o milagre econômico da China alcançou a plantação de repolhos da sra. Wang, ela estava arrumando o cabelo na aldeia vizinha - longe demais para ouvir as ordens berradas pela autoridade municipal. "Vocês têm uma hora para fazer suas colheitas e depois os tratores entrarão." Quando ela soube o que estava acontecendo e correu para o local, os campos que sua família vinha cultivando por gerações já estavam sendo revolvidos por escavadeiras. Ela ficou furiosa, mas com centenas de policiais e segurança armados cercando a área, não havia nada que ela e centenas de outros agricultores que perderam suas terras naquele dia pudessem fazer, exceto observar suas propriedades serem confiscadas para desenvolvimento. "Muitos agricultores choravam. Eu queria chorar também, mas as lágrimas não vinham", recorda Wang, de 60 anos. "Estava furiosa demais."

O ano passado presenciou provavelmente o maior surto de violência rural desde a Revolução Cultural de 1966-76. Em Shanwei, na Província de Guangdong (Cantão), forças paramilitares mataram três agricultores para conter uma manifestação de mais de mil pessoas. Em Dingzhou, Província de Hebei, sete pessoas foram mortas por tiros e bombas numa batalha entre agricultores e gangues contratadas por empreiteiros. Em Huankantou, Província de Zhejiang, dezenas ficaram feridos quando agricultores atearam fogo em viaturas policiais e usaram paus e facas para rechaçar mais de mil policiais da tropa de choque.

Nestes e em outros incontáveis casos, o estopim do conflito foi o mesmo: confiscos de terras que deixaram autoridades locais ricas e camponeses espoliados furiosos com a injustiça. Este é o lado sombrio do desenvolvimento econômico espetacular do país. Numa admissão chocante no começo deste ano, o diretor de aplicação da lei do Ministério de Terras, Zhang Xinbao, disse que houve mais de 1 milhão de casos de uso ilegal da terra nos últimos seis anos.

É tanta a preocupação do governo central que o primeiro-ministro Wen Jiabao, que chegou ao poder há três anos, advertiu no início deste ano que o país está sob risco de cometer um "erro histórico" na questão da terra. A história e a demografia sugerem que ele tem razão para estar alarmado. Foram camponeses descontentes que propeliram Mao Tsé-tung ao poder em 1949. Os moradores rurais ainda são cerca de 60% do 1,3 bilhão de habitantes do país. Contrariar esse grupo significa provocar o ódio de quase um oitavo da população mundial.

Seja por cumplicidade ou impotência, a China está supervisionando um dos maiores roubos da história mundial: o confisco de centenas de milhares de hectares de terra. E Guangdong, a província mais rica e mais aberta da China, é campo de batalha de algumas das disputas de terra mais violentas.

Durante mais de 25 anos, Guangdong tem sido a linha de frente da espetacular transformação da China. Em 1979, a cidade Shenzhen foi escolhida como o local das primeiras zonas de desenvolvimento econômico do país, permitindo a entrada de uma torrente de capital e idéias do exterior. O boom econômico que se seguiu tirou centenas de milhões da pobreza, mas abriu um abismo perigoso entre os níveis de vida.

Basta passar um dia no delta do Rio das Pérolas para ver os resultados nos imensos arranha-céus, nas novas vias elevadas, na ofuscante iluminação de néon e nas aparentemente infindáveis fileiras de fábricas - quase tudo construído recentemente em terras agrícolas - que fizeram de Guangdong a oficina do mundo. Mas há o lado sombrio do desenvolvimento vertiginoso: confiscos de terras, crime organizado, prostituição e um meio ambiente imundo que deixou cidades amortalhadas por mais de um ano numa névoa amarelada. A maioria dos camponeses em Guangdong trabalha agora em fábricas ou na construção civil. Muitas aldeias viraram zonas industriais.

A aldeia de Wang - Xiangyang - é uma das mais atrasadas e lindas de Guangdong. Seus campos produzem cebola, alho, repolho e arroz. Mas anos de desenvolvimento trouxeram os limites da cidade mais próxima, Yunfu, cada vez mais perto, até o dia em setembro de 2004 quando autoridades municipais tomaram 132 mil metros quadrados de terra de Xiangyang e três outras aldeias. Oficialmente, era para um novo posto de bombeiros, mas os incorporadores se apropriaram de terra extra para lucrar também com a construção de um showroom de carros.

Para os moradores das quatro aldeias de Yunfu, a perda da terra foi uma calamidade - eliminando os ganhos que eles conquistaram nos primeiros tempos das reformas econômicas. Quando as comunas rurais foram quebradas em 1981, cada agricultor de Xiangyang recebeu pouco mais da metade de 1 mu (unidade que equivale a cerca de 670 metros quadrados) de terra cultivável e a permissão para ganhar dinheiro extra nas cidades entre as temporadas de plantio e colheita. Em 1997, porém, o governo de Yunfu confiscou mais de um terço de sua terra para desenvolvimento, pagando uma indenização de US$ 1.400 por mu. Ainda assim, cultivando legumes, Wang e seu marido conseguiam ganhar até US$ 100 por mês - uma boa renda para um agricultor chinês.

Isso mudou completamente em 21 de setembro de 2004, quando outro grande pedaço da propriedade da aldeia foi expropriado, deixando Wang com muito pouca terra para ganhar a vida. Bastou uma doença para mergulhar sua família na pobreza. Em 2005, seu filho precisou de um atendimento de emergência por hemorragia. O pagamento dos honorários médicos e medicamentos consumiu toda a poupança da família e a deixou endividada.

O ativista local Ding Ou diz que algumas pessoas morreram porque não conseguiram pagar um tratamento hospitalar, pais não têm dinheiro para enviar os filhos à escola, e um homem se matou porque não era mais capaz de sustentar a família. "Isto já foi uma comunidade razoavelmente próspera", diz ele. "Agora é tão miserável que pessoas revolvem o lixo atrás de comida."

Problemas parecidos estão surgindo em toda a China. Desde 1979, a proporção de moradores urbanos mais do que dobrou, e uma média de 4,5 milhões de mus (300 mil hectares) de terras agrícolas são engolidos a cada ano por fábricas, estradas e conjuntos habitacionais, e o processo está se acelerando. Os agricultores acreditam que a indenização paga a eles pela terra confiscada para desenvolvimento é muito baixa. O ressentimento é particularmente agudo em Guangdong, onde a terra agrícola sobe até 30 vezes de valor quando é reclassificada como terra para desenvolvimento.

O professor Ye Jinaping, chefe do departamento de gestão fundiária da Universidade Renmin, atribuiu o problema ao fato de que as autoridades locais têm poder demais, os governadores são inclinados a medir sua importância pela extensão de seus limites urbanos, e as quantias de dinheiro envolvidas são uma enorme tentação. Outros acadêmicos dizem que os governos locais recebem de 60% a 70% dos lucros das transferências de terra.

Um dos livros mais explosivos dos últimos anos expõe os assassinatos, torturas e exploração de camponeses por autoridades locais brutais. Uma Pesquisa de Camponeses Chineses, de Chen Guidi e Wu Chuntai, foi rapidamente proibido pelas autoridades, mas cópias piratas continuam circulando amplamente. Os autores dizem: "O edifício da indústria da China foi construído com a carne e o sangue de camponeses laboriosos, e que o desenvolvimento urbano foi alcançado por sua dor e sacrifício."

No ano passado, a China presenciou 87 mil protestos, revoltas e outros incidentes de massa em quase todas as províncias. Dang Guayng, um professor do instituto de desenvolvimento rural, acredita que a solução é dar a terra aos camponeses e fortalecer seus direitos políticos - essencialmente, um pouco mais de capitalismo e muito mais democracia.

E o que faz o governo central? Comparados com seus predecessores, Wen e o presidente Hu Jintao têm dado mais ênfase ao enfrentamento da pobreza rural. Sua promessa recente de criar "um novo campo socialista" poderia anunciar uma mudança de foco no desenvolvimento urbano que caracterizou a política econômica nos últimos 20 anos. Como sinal de sua intenção, o governo anunciou em abril que alocaria US$ 5,2 bilhões extras às zonas rurais pobres e melhoraria o acesso a saúde e educação, Wen também prometeu mais democracia e prestação de contas de autoridades locais.