Título: Crime misterioso leva índios à prisão
Autor: Ricardo Brandt
Fonte: O Estado de São Paulo, 04/06/2006, Nacional, p. A12,13

Acusados pela morte de policiais, que tem versões conflitantes, 9 guarani-caiovás estão detidos há 2 meses

Nove índios guarani-caiovás estão presos há dois meses na cadeia de Dourados, em Mato Grosso do Sul, tratados como presos comuns, submetidos a precárias condições e sem poder receber visitas de familiares. Eles são acusados pelo assassinato de dois policiais civis, em 1º de abril, na aldeia de Passo Piraju - que se transformou numa das mais tensas áreas de conflito pela terra indígena do Estado.

A história contada pela polícia é controversa e trata o crime como um caso de brutal violência contra policiais. Ela também faz questão de ressaltar que o crime não tem relação com a questão dos conflitos de terras em Mato Grosso do Sul.

A versão das autoridades policiais de Dourados é a de que os policiais Rodrigo Pereira Lorenzato, de 26 anos, Ronilson Guimarães Bartier, de 36 anos, e Emerson José Gadani, de 33, buscavam um suposto criminoso numa área próxima da aldeia e decidiram cortar caminho passando por dentro da área, quando foram surpreendidos pelos índios, que os atacaram com paus e pedras. Os guarani-caiovás teriam também tomado as armas dos policiais e atirado. Rodrigo e Ronilson morreram. Emerson sobreviveu.

A versão dos índios da comunidade e de membros da Fundação Nacional do Índio (Funai) e da Comissão de Direitos Indígenas, no entanto, põe sob suspeita a versão oficial. Num dos depoimentos de moradores entregues à Comissão Indígena há relato de que naquele dia os três policiais chegaram por volta das 16h, dirigindo uma Parati (carro não oficial), armados e vestindo bermudas e camisetas. "Entraram na aldeia, foram até o final da estrada e perguntaram pelo cacique Carlito. Na volta vieram atirando e atingiram uma casa que dois indígenas cobriam com sapé e um deles foi ferido por um projétil de (uma pistola calibre) 9mm no dedo do pé", afirma o índio, em seu depoimento.

Os policiais teriam então seguido para outro lado da aldeia, onde teriam feito novos disparos. Na volta, foram abordados pelos índios, que já haviam se agrupado numa das entradas. "Quando os homens não-índios chegaram ao local onde os guarani-caiovás estavam reunidos, começaram a ameaçar com arma de fogo, atirando para o alto. Por isso os índios investiram contra os não-índios, para desarmá-los."

Ele afirma ainda que um dos disparos que atingiu um dos policiais mortos foi dado por seu próprio companheiro no momento em que eles tentavam tirar sua arma.

"As versões não batem. Nunca tinha visto os guarani-caiovás agirem dessa forma, armarem emboscada, como a polícia diz", afirma o antropólogo Antonio Brand, que coordena o Grupo Caiovás Guarani, da Universidade Católica Dom Bosco, em Campo Grande (MS). "Os guarani-caiovás são muito pacíficos, detestam violência física."

A segunda versão apresentada aqui foi repetida por vários outros índios da aldeia à reportagem. Há ainda outros registros formais que contam a mesma história e apontam os abusos cometidos por policias nos dias seguintes ao crime. Memorando do dia 2 de abril, da unidade local da Funai e encaminhado a Brasília, dá conta de "um clima bastante tenso com comoção social fortíssima", irregularidades nas ações policiais e denúncia de invasão do posto local da entidade por policiais.

Uma das falhas apontadas nesse memorando, que contesta a versão da polícia, é que desde 18 de fevereiro havia um acordo para que toda diligência em áreas de conflito indígena fosse realizada com acompanhamento da Funai. "Registramos que não fomos comunicados dessa diligência", informa o relatório.

A defesa tenta levar o caso para a Justiça Federal, por envolver questão de propriedade de terra indígena e dar a eles o tratamento que a lei define, segundo a qual os índios têm direito a prisão especial numa unidade indígena mais próxima da comarca.

A acusação trata o crime como um homicídio comum, que não envolveria conflito pelas terras. Antropólogos e até a Funai concordam, no entanto, que o pano de fundo de todos os conflitos envolvendo índios em Mato Grosso do Sul está relacionado à luta pelas terras.