Título: A perda da Bolívia
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Fonte: O Estado de São Paulo, 04/06/2006, Notas e Informações, p. A3

O presidente Evo Morales, em sua disputa com as empresas petrolíferas e mineiras estrangeiras que operam na Bolívia, tem feito farto uso de referências à dominação colonial da Espanha e, depois, ao neocolonialismo que teria subjugado o seu país. Declara-se disposto a romper os grilhões da subserviência ao capital espoliador estrangeiro e a emancipar a Bolívia das influências alienígenas. De fato, o líder cocalero, inexperiente nas questões de Estado, está apenas trocando de clientela, passando da esfera das possibilidades da economia capitalista globalizante para a das agruras e limitações do modelo autárquico. Conta, nessa empreitada, com o apoio inspirador de Cuba - um país autárquico que dependeu da "mesada" da União Soviética para sobreviver e agora depende da ajuda de Caracas - e da Venezuela de Hugo Chávez, que tem uma economia relativamente aberta, recebendo os petrodólares dos EUA, mas vê no fechamento dos países vizinhos a oportunidade de ampliar sua influência política.

Para se contrapor aos acordos bilaterais de livre comércio que os EUA estão assinando com países do hemisfério, depois que o projeto da Alca foi descartado, os governos de Cuba, Venezuela e Bolívia criaram a Alternativa Bolivariana para os Povos da América (Alba) e, no fim de abril, assinaram um documento pomposamente chamado de Tratado de Comércio dos Povos - uma volta atrás no tempo - cujos pontos principais o embaixador Rubens Barbosa reproduziu em artigo publicado na semana passada no Estado.

O Tratado coloca a Bolívia sob a tutela dos regimes de Fidel Castro e de Hugo Chávez - um ditador comunista e um coronel golpista de formação ultradireitista que têm em comum o antiamericanismo e a idéia de que o autoritarismo que professam pode ser exportado para toda a América Latina. No documento, a Bolívia é tratada como um indigente, que precisa de adjutórios para continuar vivendo. O seu futuro depende da ação hegemônica do Estado - do Estado boliviano, mas também do cubano e do venezuelano. A economia de mercado, a livre iniciativa e o dinamismo social, econômico e político que esses fatores estimulam ficam sepultados pelo voluntarismo típico do populismo. Assim, dizem os três governantes ser possível construir artificialmente economias complementares, movidas por um sistema de trocas que não dependerá de moedas fortes - ilusão que estava fora de moda há 40 anos.

Pelo Tratado, há uma clara divisão de tarefas. Cuba se encarregará de moldar as futuras elites bolivianas à sua maneira. Já estão na Bolívia "assessores" cubanos encarregados de implantar métodos de alfabetização e 602 médicos. Em escolas cubanas estudam mais de 4,5 mil bolivianos. O número de médicos se ampliará até atingir a capacidade necessária para realizar 100 mil cirurgias oftalmológicas por ano, sem falar em outras especialidades. Serão oferecidas a bolivianos 5 mil bolsas de estudos nas escolas cubanas de medicina. E Fidel Castro fornecerá a Evo Morales a experiência, o material didático e os recursos técnicos necessários para um amplo programa de alfabetização. Com isso, o ditador lançou as bases para a infiltração ideológica na Bolívia.

A Venezuela, por sua vez, se encarregará de assuntos mais prosaicos. Fornecerá todo o petróleo e produtos refinados para satisfazer à demanda interna da Bolívia, recebendo em troca produtos bolivianos. Dará - como já vem dando - assistência técnica ao governo boliviano no setor petrolífero e de gás e também no da exploração de minérios e da petroquímica. E já colocou à disposição US$ 30 milhões em dinheiro, para as necessidades imediatas do "povo boliviano".

Em troca de tanta generosidade, a Bolívia exportará seus produtos de mineração, agrícolas, agroindustriais e manufaturados para Cuba e Venezuela, na medida das necessidades daqueles países. E, o mais importante de tudo, contribuirá para a segurança energética dos dois países com toda a produção excedente de hidrocarbonetos. Ou seja, o Brasil pode perder as esperanças de obter cotas maiores de gás.

Quando Evo Morales assinou o Tratado, em Havana, a Bolívia passou para a órbita do castro-chavismo. Foi nisso que deu a política do Itamaraty de apaziguamento do radicalismo populista tanto de Chávez como de Evo Morales.