Título: África do Sul lembra o levante de Soweto
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 17/06/2006, Internacional, p. A18

Faz 30 anos a revolta estudantil que deu início à mobilização contro o apartheid, o regime de segregação racial

Eles eram alunos de primeiro grau, alguns sem idade para usar calças compridas, mas foi a sua revolta que colocou a África do Sul no caminho da libertação. Milhares deles saíram das salas de aula para inundar as ruas de Soweto, no sudoeste de Johannesburgo, num desafio ao apartheid cuja data está gravada na história do país - 16 de junho de 1976.

Três décadas mais tarde, a África do Sul celebrou ontem o levante como o ponto de virada em que os negros tomaram a iniciativa no gueto de Soweto. Cerimônias homenagearam os estudantes como heróis que assentaram os alicerces da liberdade ao iniciarem uma luta que culminou em eleições democráticas em 1994.

O presidente sul-africano, Thabo Mbeki, seguido por uma multidão, realizou uma marcha que partiu da escola Morris Isaacson, lugar emblemático da revolta, para terminar no memorial Hector Peterson, um jovem de 12 anos que foi a primeira vítima do levante e cuja foto - sendo carregado por um companheiro - deu a volta ao mundo e desencadeou uma mobilização mundial sem precedentes contra o regime racista sul-africano. Os jovens estudantes decidiram sair às ruas furiosos por serem obrigados a aprender o africânder (a língua falada pelos colonizadores brancos). A polícia, enfrentando seu mais audacioso desafio em anos, ficou nervosa e abriu fogo, matando pelo menos 23 jovens . As mortes provocaram uma revolta que se espalhou para outros municípios. Os distúrbios violentos nos meses seguintes radicalizaram uma geração e anunciaram o recuo do apartheid. O governo disse que 95 pessoas foram mortas na onda de violência, mas estimativas não oficiais indicam que foram mais de 500.

A retórica e a pompa das celebrações, porém, mascararam uma nova luta que está dividindo antigos colegas de classe de um modo que poucos imaginaram naqueles anos quando eles estavam ombro a ombro contra cães, balas e bombas de gás lacrimogêneo.

Alguns saíram do tumulto ricos e bem-sucedidos, exemplos de uma nova nação em que os negros têm a oportunidade de progredir. Outros saíram empobrecidos e amargurados, membros de uma subclasse que se sente abandonada. O desemprego, oficialmente em 26,7%, está, na realidade, mais perto de 40%, uma das taxas mais elevadas do mundo.

A África do Sul é hoje uma das sociedades mais desiguais do mundo. Uma classe média negra cada vez mais confiante alimenta um boom de consumo enquanto milhões permanecem num lodaçal de desemprego e condições de vida estarrecedoras.

Dois antigos escolares rebeldes, Oupa Moloto e Robert Zondo, ilustram a divisão. Ambos atuam no memorial Hector Peterson. Dentro do edifício, Moloto, de 50 anos, um empresário bem-sucedido e membro do partido governante, Congresso Nacional Africano (CNA), tem um escritório onde ajuda a coordenar eventos comemorativos. Em 1976, ele foi um dos líderes estudantis. Moloto entrou no movimento guerrilheiro clandestino do CNA, mas foi apanhado e preso por dois anos. Depois de solto, retomou as atividades clandestinas enquanto trabalhava como motorista de táxi - um degrau da escada econômica que o deixou bem posicionado quando Nelson Mandela foi eleito presidente em 1994. Sua experiência reflete a de uma nova classe média negra que está crescendo 50% a cada ano, segundo uma pesquisa da Universidade de Cidade do Cabo.

No frio de inverno do lado de fora do memorial, apregoando quinquilharias na calçada, está Zondo, de 38 anos, outro ex-rebelde estudantil. Ele completou a educação secundária mas a agitação política o impediu de obter uma graduação em administração. Pai solteiro, sua renda é suplementada por um auxílio mensal de 15 libras (cerca de U$ 28) do governo. "Meu garoto poderá se beneficiar da liberdade que conquistamos, mas não eu. Hoje eu não comi. Os visitantes deste lugar acham que os negros agora são livres - eles não compreendem que a luta econômica continua."