Título: O 'faz-de-conta' do respeito à lei
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 28/06/2006, Notas e Informações, p. A3

O jogo de "faz de conta" - a expressão é do presidente do TSE - continua, mas ninguém tem o direito de se surpreender. O mesmo presidente que nega de pés juntos que o mensalão tenha existido, como se não soubesse, entre tantas outras coisas, que o procurador-geral da República já acabou com a farsa, ao denunciar a "sofisticada operação criminosa" destinada a manter o PT no poder, assume agora pose angelical na campanha sucessória. Lula mandou três de seus ministros, Márcio Thomaz Bastos (Justiça), Tarso Genro (Relações Institucionais) e Dilma Rousseff (Casa Civil), preparar uma portaria especificando o que ele e o primeiro escalão do Planalto podem ou não podem fazer pela reeleição, para não afrontar a legislação.

De quebra, Thomaz Bastos e Tarso Genro foram incumbidos pelo chefe de fazer uma barretada ao presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Marco Aurélio de Mello, sob a forma de uma visita que exibiria, além de consideração pela autoridade de que está investido, a elogiável disposição do governo de contribuir para a lisura da campanha e a igualdade de oportunidades eleitorais entre o incumbente e o seu principal desafiante, Geraldo Alckmin, do PSDB. Mello assumiu a Justiça Eleitoral deixando clara a sua preocupação de acabar com o "faz-de-conta" dos políticos capazes de tudo e mais alguma coisa na caça ao voto e que fingem ter as mãos limpas.

Ainda na semana passada, o ministro entendeu que os aumentos concedidos por medidas provisórias assinadas por Lula a numerosos setores do funcionalismo federal contrariam, se não a letra, o espírito da lei que proíbe iniciativas do gênero nos seis meses anteriores ao pleito. O parecer de Mello é controverso e pode ser interpretado como excesso de zelo. Mas, errando ou acertando, pelo menos ele não tem duas caras. Já o presidente Lula pretende ser o político mais obediente às leis e normas que buscam separar - nem sempre com clareza ou com coerência, é verdade - os atos do candidato detentor do privilégio de continuar no exercício do governo, enquanto faz a sua campanha, das funções, atribuições e responsabilidades do chefe do governo e do Estado.

O "pequeno detalhe", porém, é que o candidato-presidente, tão zeloso do cumprimento das regras eleitorais que se aplicam à campanha a se iniciar oficialmente no dia 6 de julho, passou três anos e meio usando e abusando das facilidades de sua condição de chefe de governo para fazer campanha por mais quatro anos do mesmo, sob o disfarce de administrar o País. Com o passar do tempo e o aumento do despudor, Lula deixou de se preocupar com manter a aparência de que ainda não decidira buscar a reeleição. Em dado momento, disse com todas as letras que não assumia de vez a candidatura para não ser acusado de usar a máquina federal a seu favor, o que, por sinal, é muito diferente de negar que a estivesse usando.

Por fim, fez saber que, impedido legalmente de lançar pedras fundamentais e inaugurar obras a partir de julho - como se fossem reais quase todas as que a sua gente inventava para ele poder fazer o seu número -, continuaria viajando pelo País de segunda a sexta-feira a fim de inspecioná-las, reservando os fins de semana para a campanha. Diante disso, é de um cinismo sem tamanho a decisão da Radiobrás de suspender a emissão do programa radiofônico matinal Café com o presidente, voltado para as camadas mais pobres da população. Que exemplo de rigorosa subordinação às leis tem o Brasil na pessoa de seu supremo mandatário! O pior é que o teatro armado pelo Planalto dificulta o exame de uma questão substantiva relacionada com a reeleição.

A lei que instituiu o sistema contém de saída um paradoxo: o mandatário interessado em conquistar um segundo período de governo pode trabalhar para isso sem se afastar do posto; já se ele quiser se candidatar a outro cargo - digamos, um governador que prefira obter uma cadeira no Senado - tem de se desincompatibilizar meio ano antes. O mínimo que se pode dizer dessa regra é que ela é contra-intuitiva. Pela lógica, se fosse o caso de se fazer alguma distinção entre as duas situações, a norma deveria beneficiar o candidato a outras funções. Sendo o que são os costumes políticos nacionais, idealmente todos precisariam se desincompatibilizar.