Título: Nova rendição brasileira
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Fonte: O Estado de São Paulo, 28/06/2006, Notas e Informações, p. A3

O governo brasileiro rendeu-se mais uma vez às imposições do governo argentino, quando o ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, Luiz Furlan, assinou em Buenos Aires, na segunda-feira, o novo acordo para o setor automotivo. O livre comércio de veículos e autopeças deveria, pelo acordo anterior, vigorar desde o começo do ano passado, entre os dois países. O prazo foi esticado até o fim de 2005 por pressão argentina. Deixou de vigorar novamente este ano e já não se fala no assunto: o novo pacto não menciona uma data para liberalização do setor. Vitória de Buenos Aires também nesse ponto.

O novo esquema deverá valer por dois anos, de 1º de julho deste ano a 30 de junho de 2008. As condições do comércio automotivo entre os dois países, depois desse prazo, ainda serão discutidas, mas não há compromisso de eliminação de barreiras.

O prazo deverá ser suficiente para a maturação dos novos investimentos na indústria instalada na Argentina, segundo o presidente da associação brasileira das montadoras, a Anfavea. Com o câmbio favorável e a retomada do crescimento econômico, as fabricantes de veículos intensificaram a produção na Argentina e isso deve contribuir para o aumento das exportações para o Brasil.

"Os dois lados buscaram o equilíbrio e com isso chegamos a um bom entendimento, uma vez que este acordo garante previsibilidade, estimula novos investimentos e permite uma acomodação da situação dos dois países", disse o secretário da Produção do Ministério do Desenvolvimento, Antônio Sérgio Martins Mello, coordenador brasileiro do grupo de trabalho do setor automotivo.

A referência ao equilíbrio é um exagero. O presidente argentino, Néstor Kirchner, foi um pouco mais fiel aos fatos. O acordo, segundo ele, "permitirá consolidar a indústria automotiva do Brasil e da Argentina, mas especialmente a da Argentina". É aquela velha história do "todos são iguais, mas uns são mais iguais que os outros". O novo pacto setorial, discutido durante meses, foi concebido para isso: para atender aos interesses de um dos lados. O outro simplesmente se conformou, como se não houvesse alternativa. Tem sido assim há anos, como se a sobrevivência do Mercosul dependesse de o Brasil ceder sempre.

Pelo acordo anterior, um país poderia, para cada US$ 100 importados, exportar até US$ 260 sem impostos. Esse fator, conhecido como flex, foi reduzido. Pelo novo acordo, um país poderá exportar até US$ 195 para cada US$ 100 importados do outro. No primeiro ano de vigência o limite poderá oscilar até US$ 210.

O governo brasileiro apenas conseguiu impedir uma versão pior do novo flex. O governo argentino defendeu a fixação de limites diferentes para cada parceiro. Pretendeu também a adoção de controle por fábrica e não pelo total do comércio de automóveis. Para os otimistas, a rejeição dessas duas propostas pode ter uma indicação de como o acordo foi equilibrado. Mas isso é um auto-engano. A mera aceitação do novo acordo - e sem novo prazo para a liberalização do comércio setorial - já foi uma rendição do governo brasileiro. O resto, no melhor dos casos, é só uma limitação de perdas.

O ministro Furlan aproveitou o bom ambiente da formalização do acordo, na segunda-feira, para pedir ao governo argentino o fim das barreiras a importações de eletrodomésticos da linha branca, sapatos e televisores produzidos no Brasil.

Essas e outras barreiras foram aceitas da maneira mais cordata pelo governo brasileiro, nos últimos anos, como um preço a ser pago por uma liderança regional imaginária. A restrição a importações de produtos brasileiros abriu espaço, no mercado argentino, para indústrias de outros países.

De janeiro a maio deste ano, o valor das importações argentinas de televisores foi 255% maior que o de um ano antes. Mas o valor dos aparelhos brasileiros comprados pelos argentinos foi 149,6% superior ao de janeiro a maio de 2005. Algo semelhante ocorreu no comércio de calçados e fogões.

É uma estranha concepção de união aduaneira - no caso, o Mercosul. Criam-se barreiras à importação de produtos de um país associado e abre-se o mercado aos fabricantes de terceiros países. E o governo brasileiro festeja o sucesso do bloco.