Título: Tecnologia médica, vida e morte dignas
Autor: Gilberto Dupas
Fonte: O Estado de São Paulo, 17/06/2006, Espaço Aberto, p. A2

O avanço da tecnologia tem feito a ciência médica adquirir uma auréola mágica que inibe a crítica e a coloca acima da razão e da moral. Discursos laudatórios sobre o aumento da expectativa de vida média da humanidade, novas competências na cura de alguns cânceres e os maravilhosos transplantes de órgãos parecem desqualificar como absolutamente sem sentido qualquer restrição à maneira como avançam as tecnologias da saúde, transformadas em sinônimos de progresso.

Pesquisadores e cientistas importantes tentam alertar para as conseqüências dessa primazia de uma técnica subordinada crescentemente ao lucro privado, e não a uma concepção de saúde verdadeiramente pública e plena de valores e significados. Os diagnósticos de saúde apertam cada vez mais os "índices máximos" permitidos para um indivíduo médio ser considerado sadio, reforçando recomendação de medicação preventiva para "atenuar riscos". Um importante especialista internacional da área de check-ups, empolgado com seus recursos bioeletrônicos de última geração, declarou recentemente que não há indivíduos sãos, apenas doenças ainda não diagnosticadas.

O imperativo da medicalização está estreitamente atrelado à lógica de retorno do investimento da pujante indústria do setor de saúde, hoje muito concentrada e transnacional. Frank Furedi, professor da Universidade de Kent (Inglaterra), explica que até questões "existenciais" estão a receber nomes de doenças e drogas específicas para o seu "tratamento". É o caso da velha timidez, agora diagnosticada como "fobia social". Até paixão amorosa virou doença a ser tratada. Ele lembra que, quando um "rótulo médico" é fixado, a indústria farmacêutica cria uma nova pílula específica. Uma criança tem problemas de conduta na escola e é encaminhada para um serviço médico, que detecta fobias noturnas e enurese. "Normalizada" em seus sintomas com uma "droga lícita", ela é considerada um caso "resolvido".

Os estímulos da medicalização estão nos outdoors de todas as cidades do mundo: "Disfunção erétil agora tem solução. Consulte o seu médico" ou "Você já pode ser tão esbelta quanto a modelo ao lado. Procure um especialista". Quase não há mais preocupação sobre se o sexo na adolescência é prazeroso e psíquica ou moralmente adequado, desde que seja feito com preservativo. O uso de drogas para tratar distúrbio de hiperatividade por déficit de atenção mais que dobrou de 2000 para 2004 na idade de 20 a 44 anos. Mas não existe preocupação sistemática para identificar por que as crianças estão mais hiperativas ou as pessoas, mais desatentas ou impotentes. Mais de US$ 0,5 bilhão em propaganda colocaram o Viagra e assemelhados entre as drogas de maior venda nos EUA. Sete anos após há uma queda forte no consumo e surgem hipóteses que relacionariam o uso da droga com formas raras de cegueira. No caso famoso do antiinflamatório Vioxx, o New England Journal of Medicine levantou suspeitas de que dados de resultados de teste clínico básico foram omitidos, diminuindo a importância dos riscos para o coração. Finalmente, pesquisa feita pela revista científica britânica Nature revelou que vários especialistas médicos que recomendam as regras de prescrição recebem estímulo financeiro da própria indústria.

A medicina tecnocientífica transformou o nascimento de uma criança, de uma função fisiológica para a qual o organismo da mulher esteve desde sempre preparado, num evento fundamentalmente cirúrgico-hospitalar. Como lembra Vera Iaconelle, o corpo humano passa a ser considerado incapaz e necessitado de "constantes correções de seus desvios biológicos". Donald Winicott já dizia que médicos são muito necessários quando algo dá errado. Mas eles "não são especialistas nas questões relativas à intimidade, vitais tanto para a mãe quanto para o bebê", que precisam apenas de "recursos ambientais que estimulem a confiança da mãe em si própria" - o oposto do que faz o aparato médico-cirúrgico.

O clínico geral - que examinava as dores do ser humano, e não só a doença - deu lugar ao especialista, que pode olhar para as muitas áreas que ignora com a arrogância de sábio da pequena área que de fato domina. E o desprezo por técnicas alternativas é uma característica comum da medicina contemporânea. Só recentemente as normas hospitalares reconheceram que crianças saram mais depressa em ambiente hospitalar quando suas mães podem ficar com elas, ou quando há acesso a salas com jogos e pequenas diversões. Enquanto isso, hospitais de periferia, carentes de recursos, substituem com enorme vantagem as caríssimas, invasivas e "frias" incubadoras pelas técnicas milenares da "mãe-canguru".

Finalmente, novas técnicas de manutenção de vidas "artificializadas" foram desenvolvidas e agridem o senso comum. É o reinado das UTIs. A morte digna cercada pelos familiares, aspiração atávica da humanidade, desapareceu quase por completo. Os doentes atuais morrem mais sós e mais lentamente, sedados para suportar a agressão de tubos e agulhas. E as famílias ficam mais pobres. A reação da sociedade começa a ser sentida nas ações judiciais tentando garantir o direito do doente de determinar de que forma quer morrer. Afinal, esse é o direito derradeiro do indivíduo, uma escolha que nem a equipe médica mais qualificada pode fazer.

A medicina contemporânea muitas vezes salva e prolonga vidas, mas também gera um imenso exército de mortos-vivos que perambulam pelos ambulatórios ou vivem presos a tubos de UTIs. Ninguém é eterno. É preciso tentar perguntar a todos os pacientes nessa condição se ainda lhes interessa viver, se a qualidade de vida que levam vale a pena. Cada um tem o direito a dar sua resposta.