Título: A ruptura pode estar próxima
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Fonte: O Estado de São Paulo, 15/06/2006, Economia & Negócios, p. B6

O número que pode ser o mais importante na profusão de estatísticas econômicas americanas é divulgado toda quinta-feira à noite como um apêndice da avaliação semanal das condições do Federal Reserve (Fed, banco central americano). Esse número geralmente ignorado - poucos jornais o divulgam, se é que algum o divulga - tem a virtude incomum da precisão, pois é uma simples declaração financeira saída de uma máquina de calcular, e não de um computador ou de uma fórmula.

O que o número anuncia é o volume de títulos do governo e estatais mantido em "contas internacionais e oficiais estrangeiras" - isto é, bancos centrais e ministérios das Finanças estrangeiros - pelos bancos centrais.

O número é importante porque mede, ao longo do tempo, a demanda de ativos americanos por empresas privadas nas nações credoras. É importante porque é muito grande - na semana passada, chegou perto de US$ 1,63 trilhão. Há três anos, pouco antes da invasão do Iraque, ficou em torno de US$ 900 bilhões. Na semana em que George W. Bush assumiu a presidência, foi de US$ 693 bilhões.

Nosso apetite por bens importados joga cerca de US$ 600 bilhões a US$ 700 bilhões por ano nas mãos de fornecedores estrangeiros. As empresas que recebem esses dólares têm duas opções básicas sobre o que fazer com eles: gastá-los ou investi-los nos EUA, ou convertê-los em sua própria moeda.

Os exportadores para os EUA que conservam os dólares e os usam para compras e investimentos americanos criam aquilo que os economistas chamam de fluxo autônomo de fundos para os Estados Unidos, financiando o déficit comercial americano com um superávit de investimento nos EUA.

Isso cria o argumento mais estreitamente associado ao novo presidente do Fed, Ben Bernanke (embora Alan Greenspan também acreditasse nisso), de que o nosso déficit comercial é causado por um superávit de poupança que não pode ser lucrativamente investido nos países de nossos parceiros comerciais. Financiar o nosso déficit comercial vem antes do próprio déficit, e na verdade o provoca.

Se em vez de investir seus dólares nos Estados Unidos os exportadores estrangeiros quisessem receber os proventos de suas vendas em sua própria moeda, seus bancos centrais de fato lhes venderiam essa moeda em troca de seus dólares.

Nos anos 60, quando os déficits da Grande Sociedade e da Guerra do Vietnã provocaram a primeira liquidação séria de dólares (e obrigaram os Estados Unidos a abandonarem o padrão ouro porque uma quantidade excessiva de detentores de dólares, liderado pelo presidente Charles de Gaulle, da França, queria ouro), esses bancos centrais jogaram os dólares no novo mercado do eurodólar, no qual eles eram negociados de certa forma separadamente dos dólares domésticos.

Isso criou uma perspectiva assustadora de os Estados Unidos perderem o controle de sua própria moeda, e, em 1971, o presidente do Federal Reserve, Arthur Burns, negociou um acordo com os bancos centrais europeus e japonês. O acordo foi que eles devolveriam aos Estados Unidos os dólares que adquirissem em suas próprias economias, e o Federal Reserve investiria o dinheiro em seu favor, em títulos do governo absolutamente garantidos, sem encargos, e com as melhores taxas.

Hoje, o Federal Reserve continua com a custódia dos "ativos oficiais estrangeiros" dessas obrigações do governo. Durante a administração de Bill Clinton, o Federal Reserve concordou em investir em títulos imobiliários com garantia federal para aqueles bancos centrais estrangeiros que quisessem para as suas reservas de dólares uma rentabilidade melhor do que obteriam de bônus do governo, e agora, mais de meio trilhão de dólares dos ativos oficiais totais estão investidos em papéis com aval do Fed.

Os ativos oficiais estrangeiros de papéis do governo são um número de alerta. Ele informa se haverá um grande problema à frente. A preocupação mais comum é que o número encolha repentinamente, com governos estrangeiros liquidando suas posses em dólares, derrubando o valor da moeda e provocando uma elevação das taxas de juros americanas, mas este não é um perigo real.

Se o preço dos títulos de nosso governo despencasse, os bancos centrais estrangeiros teriam de arcar com o prejuízo. Isso seria um item de orçamento para os governos, cujos líderes não gostariam nada.

O que precisamos observar é um aumento súbito e drástico dos ativos oficiais estrangeiros. O crescimento acelerado desse número nos finais dos anos 60 e 70 anunciou as recessões de inícios dos anos 70 e 80, e isso poderia acontecer de novo.

Os grandes aumentos recentes desses ativos indicam que os investidores privados estrangeiros vêem menos lugares atraentes para colocar seu dinheiro na economia americana.

Eles poderiam pressagiar uma queda significativa no preço dos ativos, ações (vejam as quedas recentes nos mercados acionários americanos), bônus e imóveis americanos, e um pouso difícil para uma economia mundial que ainda navega na crista do crédito barato.