Título: Estelionato histórico
Autor: Rolf Kuntz
Fonte: O Estado de São Paulo, 15/06/2006, Economia & Negócios, p. B2

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva está vendendo como suas, ao eleitorado, realizações alheias. No dia 2, em São José dos Campos, ele se declarou feliz por ver brotar "algumas coisas" por ele plantadas no começo do governo. Em seguida, apresentou uma lista de feitos: a produção de plataformas para prospecção e exploração de petróleo, a internacionalização da Petrobrás (antes considerada, segundo ele, uma "empresa territorial") e, no meio do aranzel, a auto-suficiência em petróleo. Graças a seu estímulo, afirmou, a estatal venceu o medo de competir com empresas de todo o mundo.

O presidente só menosprezou alguns fatos. A Petrobrás atua no exterior há mais de um quarto de século. Estava no Iraque em 1979, quando começou a guerra com o Irã. No começo de seu governo não operava, como ele insinuou no discurso, apenas em Angola. Desde os anos 80, tem crescido sua atuação internacional. O presidente deveria conhecer, por exemplo, sua presença na Argentina e no Golfo do México. Quanto ao crescimento da produção, acentuou-se a partir dos anos 70, com o sucesso da exploração em águas profundas. A propalada auto-suficiência está no horizonte da companhia há muito tempo, mas a história do Brasil, para o presidente Lula, começou em 2002. Ou, pelo menos, a parte boa dessa história.

Já está ficando cansativo listar mudanças importantes ocorridas antes da chegada do PT à Presidência da República. A drástica redução do analfabetismo é bem conhecida: entre 1992 e 2002, a parcela de analfabetos com 15 anos ou mais caiu de 17,2% para 11,8%. Houve melhora em todos os números da escolarização. Sobraram problemas graves de qualidade, assunto não enfrentado por este governo. Os indicadores de saúde também mudaram. Naquele período, a mortalidade infantil passou de 42,6 óbitos de menores de 1 ano por 1.000 nascidos vivos para 27,8.

De modo geral, o indicadores sociais pesquisados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revelaram progressos significativos. Se respeitasse os fatos um pouco mais, o presidente poderia lembrar da criação do Conselho Nacional da Segurança Alimentar em 1993 e, como desdobramento dessa iniciativa, do lançamento do programa Comunidade Solidária no governo seguinte, com participação do sociólogo Herbert de Souza, o Betinho.

Os programas sociais do atual governo não são mais que desdobramentos dessas iniciativas - incluída, naturalmente, a da Bolsa Escola. Que tenha havido mudanças, fusão de programas e melhora de resultados, em alguns casos, parece apenas normal, quando se considera a experiência acumulada. Notável, mesmo, é o permanente e desonesto esforço para obscurecer ou negar todos esses dados.

De resto, nenhuma realização deste governo seria possível sem as enormes transformações ocorridas na década anterior. Para começar, a instabilidade econômica de 2002 foi o preço da irresponsabilidade dos petistas. A agitação nos mercados foi apenas uma resposta previsível às conhecidas ameaças de calote da dívida pública. Petistas apoiaram a realização do plebiscito sobre a dívida. Se tinham a esperança de assumir o governo, deveriam evitar uma tolice desse calibre. Só parecem haver notado o tamanho da imprudência, quando a candidatura de Lula começou a crescer e a inquietação nos mercados aumentou. A Carta aos Brasileiros foi uma tentativa de apagar aquela bobagem. O governo do presidente Lula conteve a inflação em 2003, fazendo o contrário da política pregada por seus luminares econômicos. Mas o arrocho adotado pelo Banco Central só funcionou porque os governos anteriores haviam recriado as condições da política monetária. Essas condições dependeram de dois fatores principais: 1) a reforma de 1994, com a desindexação da maior parte dos preços; 2) a renegociação das dívidas estaduais. Sem essa renegociação, não se teria resolvido o problema dos bancos oficiais, fontes importantes de descontrole monetário. Qualquer pessoa razoavelmente informada conhece esses fatos. Conhece também a relevância da Lei de Responsabilidade Fiscal, uma das maiores inovações institucionais desde a posse de um governo civil em 1985. O atual governo não realizou nenhuma inovação dessa envergadura, nem concluiu nenhuma negociação tão complexa. Beneficiou-se dessas mudanças, embora não as valorize. Valorizá-las seria um ato de honestidade - e uma enorme surpresa.