Título: Um lance eleitoral
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Fonte: O Estado de São Paulo, 01/07/2006, Notas e Informações, p. A3

As negociações com o Brasil continuam em banho-maria, mas, com o presidente Néstor Kirchner, Evo Morales, da Bolívia, já assinou um acordo que fixa o novo preço para o gás vendido para a Argentina. O combustível, que era vendido a US$ 3,20 o milhão de BTU, custará agora US$ 5. Em circunstâncias normais, esse preço sinalizaria o resultado das negociações entre a Bolívia e o Brasil. Mas Evo Morales acha que pode tirar mais do Brasil do que conseguiu da Argentina. Sua meta é obter US$ 8 pelo gás transportado pelo Gasoduto Bolívia-Brasil, ou seja, o preço do gás colocado na Califórnia, ao redor dos US$ 7,50, mais US$ 0,50 de "ajuste ecológico". Isso dobraria o preço pago hoje pelo Brasil.

Na fase inicial das negociações, logo após a nacionalização dos hidrocarbonetos decretada por Evo Morales, os dois compradores fizeram um arranjo informal, pelo qual não aceitariam discutir qualquer proposta que colocasse o preço do produto nos níveis norte-americanos. Mas Néstor Kirchner e Evo Morales preferiram negociar à parte, deixando o Brasil para trás. Essa decisão era pedra cantada desde que o presidente Kirchner, num discurso feito no parlamento espanhol, afirmou categoricamente que os presidentes Morales, da Bolívia, e Hugo Chávez, da Venezuela, não são líderes populistas e deu o seu aval às políticas de ambos. Dias depois, o ministro do Planejamento da argentina e o vice-presidente da Bolívia acertaram o preço do gás.

Morales e Kirchner usaram essa questão como trunfo eleitoral. O presidente argentino está em plena campanha reeleitoral e agora pode anunciar que o abastecimento do combustível, do qual dependem as geradoras termoelétricas, está garantido - ou seja, este ano as indústrias e os lares argentinos não serão ameaçados pelos apagões, como no ano passado. E o governo já anunciou que, apesar de pagar mais à Bolívia, os preços internos do gás não serão aumentados.

Evo Morales, por sua vez, tinha pressa em garantir um cliente cativo para o gás boliviano - que por motivos logísticos só pode ser comprado pela Argentina e pelo Brasil. Amanhã ele enfrenta o seu primeiro teste eleitoral e, apesar de ter um índice de popularidade ao redor dos 85%, quis alardear uma vitória: a lucrativa mudança do contrato de fornecimento de um dos poucos produtos de exportação de seu país. Por esses motivos é que Kirchner e Morales se reuniram, após a assinatura dos documentos, num comício na Grande Buenos Aires. Kirchner faturou eleitoralmente o afastamento de qualquer ameaça de apagão. Evo Morales pôde dirigir-se a um grande número de imigrantes bolivianos que vivem em Buenos Aires.

Na Argentina, vivem cerca de 2 milhões de bolivianos que, nas últimas eleições, votaram maciçamente em Evo Morales. Ele precisa desses votos para obter para seu partido - o Movimento ao Socialismo - uma esmagadora maioria na Assembléia Constituinte que será eleita amanhã. Com a maioria dos 255 constituintes, Evo Morales pretende dotar a Bolívia de uma constituição feita à sua imagem e semelhança - um estatuto político que, como ele diz, "devolva" o país à população indígena.

No mesmo pleito, os bolivianos decidirão em referendo sobre a autonomia dos nove departamentos que formam o país. Convocado por pressão da região de Santa Cruz - a mais rica e industrializada do país, onde já houve um forte movimento separatista, hoje amenizado -, o referendo será realizado sem que os eleitores saibam exatamente o que estão decidindo. Não está definido, por exemplo, o grau de autonomia que terão os departamentos - equivalentes aos Estados brasileiros -, nem se a autonomia se aplicará a todos indistintamente, ou se apenas aos que quiserem um certo grau de autogoverno.

Os termos do referendo são tão confusos que não se sabe qual o número mínimo de votos que obrigará a Constituinte a discutir a questão da autonomia regional. De qualquer forma, o presidente Evo Morales joga sua popularidade na derrota da tese autonomista.

Se obtiver maioria de dois terços na Assembléia Constituinte, poderá decidir sobre matéria constitucional sem negociar com a oposição. Se conseguir isso e, como tem feito até agora, continuar seguindo os conselhos e os exemplos de seu mentor, Hugo Chávez, as instituições bolivianas, que nunca foram um modelo de estabilidade política, ficarão a serviço do populismo nacional-indigenista, que de democrático não tem nada.