Título: 'Cota não tira direitos e é instrumento passageiro'
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Fonte: O Estado de São Paulo, 01/07/2006, Nacional, p. A12

O diretor-executivo da Educação e Cidadania de Afrodescendentes e Carentes (Educafro), frei David Raimundo dos Santos, acredita que hoje o quadro do País é injusto com os negros e defende a adoção do sistema de cotas como "uma provocação dos excluídos frente à classe dominante". "A cota não tira direitos, mas rediscute a distribuição dos bens escassos", disse ao Estado, pregando seu uso como "instrumento passageiro", até que a distribuição igualitária dos serviços públicos seja alcançada.

Por que o sr. defende as cotas?

Entendo que o Brasil precisa adotar cotas para avançar na construção da igualdade de direitos para suas várias etnias As cotas também são necessárias como instrumento para levantar a auto-estima do povo afro-brasileiro no direito à educação, saúde e lazer. Minha alegria é saber que das quase 40 universidades públicas que adotaram cotas, nas 20 que fecharam suas pesquisas os cotistas, após um ano de estudo, estão com notas acadêmicas iguais ou superiores aos alunos que entraram sem cotas.

Mas as cotas não ferem o princípio da igualdade, não prejudicam o restante da população?

A cota não tira direitos, mas rediscute a distribuição dos bens escassos da nação. É uma provocação dos excluídos frente à classe dominante. Provocação para mudar a situação. Só existirão cotas enquanto os bens disputados forem escassos. A cota aparece quando os bens são distribuídos de maneira injusta. O fator que determina isso é o fator econômico. O negro não tem dinheiro para pagar cursinho caro e passar na USP. O vestibular não usa como ferramenta a capacidade. Usa como ferramenta o dinheiro. Então vestibular é privilégio. E as cotas vêm justamente quebrar privilégios. A melhor resposta que tive sobre cota até agora foi de um jovem negro lá da Uerj. Ele assim disse: "Frei David, eu prefiro ser discriminado estando dentro da universidade do que ser discriminado fora da universidade."

Os críticos dizem que as cotas podem provocar o conflito racial, acirrar a discriminação.

Temos quase 40 universidades estaduais e federais que adotaram cotas. Em todas que contatei me informaram que não só não aumentaram em um milímetro os conflitos, mas os conflitos que normalmente aparecem foram tratados com mais capacidade e usando instrumentais mais eficazes de resolução dos conflitos.

Como o sr. recebeu a notícia do manifesto contra as cotas?

Eu entendo que comete erros graves, porque joga com palavras e cria sentidos dúbios. Os autores defendem um princípio de igualdade, mas estão estritamente ligados, maldosamente, à igualdade jurídica. Os autores estão totalmente afastados e não querem nem saber da igualdade material, da igualdade real e da igualdade de fatos. O assunto do negro do Brasil sempre foi levado para debaixo do tapete, sem debates. Hoje cresce a consciência e a determinação do negro de participar concretamente. Outro ponto: segundo o Ipea, desde 1929 todas as políticas públicas universais introduzidas em nada mudaram a desigualdade entre brancos e negros. Estamos questionando a carta, quando diz que políticas universalistas resolveriam o problema do negro. Ou é ingenuidade ou maldade dos autores.

O sr. acredita que seja o quê?

As duas coisas. Desconhecimento é impossível, porque eles são doutores. Também estranha muito ver doutores, especialistas em antropologia dizerem que a proposta das cotas cria privilégios. Aí tem um toque de perversidade. E a previsão é que em dez anos as cotas serão dispensáveis.