Título: Uma oportunidade crucial
Autor: Paulo Sotero, WASHINGTON
Fonte: O Estado de São Paulo, 09/06/2006, Internacional, p. A15

O sucesso de qualquer insurgência depende sempre do grau de apoio popular. Num país ocupado por tropas estrangeiras e onde o governo não é percebido como independente, a fonte de apoio mais poderosa é o nacionalismo. Os ocupantes são a melhor ferramenta de recrutamento dos insurgentes.

Essas verdades básicas nunca foram suficientemente levadas em consideração pela administração George W. Bush e pelo governo britânico ao lidarem com o Iraque. Ignorá-las foi a maior asneira no período que precedeu a invasão, quando se supôs falsamente que a maioria dos iraquianos saudaria a chegada de tropas ocidentais. Depois da invasão, comandantes e políticos americanos continuaram subestimando o alcance do ressentimento e da resistência nacionalista.

A morte de Abu Musab al-Zarqawi, o autoproclamado líder da Al-Qaeda no Iraque, oferece uma nova chance para um ajuste à realidade. Sua morte foi recebida com alívio e alegria por muitos iraquianos. Embora atraído para o Iraque pelo ímã da ocupação, ele era visto como o arquiteto de uma campanha de terror que não tinha nada a ver com a insurgência real e visava a provocar o caos e a guerra civil sectária.

Fundamentalista sunita extremado, para quem os xiitas não eram verdadeiros muçulmanos, ele e seu grupo passaram a atacar cada vez mais alvos xiitas, primeiro em seus templos mais sagrados, depois em qualquer lugar onde estivessem em grupo, arrastando-os para fora de ônibus ou seqüestrando-os de suas casas e locais de trabalho.

Durante meses surgiram sinais de que sua carnificina perversa estava alienando muitos líderes sunitas iraquianos, apesar de ele depender de contatos dentro das complexas estruturas tribais do Iraque para obter casas seguras e proteção. Uma conseqüência disso foi que Zarqawi foi obrigado a não prejudicar a eleição de dezembro para um novo governo iraquiano, pois os sunitas queriam participar dela. Seu ultra-radicalismo lhe valeu rejeições de dentro da própria Al-Qaeda. Ayman al-Zawahiri, vice-líder da Al-Qaeda, escreveu-lhe uma carta no ano passado advertindo-o sobre o risco da perda de apoio popular, questionando a sabedoria de ataques a xiitas comuns e denunciando os vídeos de decapitação de reféns. Apesar de não ter sido comprovada a autenticidade da carta, sua mensagem pareceu plausível.

Zarqawi foi lembrado de que o Taleban não conseguira ampliar sua base política e caíra em grande parte por essa razão. Também lhe foi dito para recordar que a resistência no Iraque não podia ser conduzida por "não-iraquianos" e, portanto, ele, um jordaniano, devia se submeter ao sentimento local - uma reflexão sobre a necessidade de compreender o orgulho nacional, que se aplica mais intensamente aos americanos e britânicos.

Zarqawi e outros jihadistas estrangeiros sempre foram uma minoria dentro do espectro da resistência. Os estrangeiros nunca constituíram mais do que 10% dos combatentes e supostos insurgentes mortos ou detidos pelas forças de ocupação e pelo Exército e polícia iraquianos.

Zarqawi certamente tinha aliados iraquianos e sua influência na incitação de atentados suicidas ficou provada quando foi presa em Amã uma mulher iraquiana que fazia parte do grupo que se explodiu em três hotéis da capital jordaniana em novembro. O teste dessa influência virá nas próximas semanas. Será que o número de ataques brutais a civis e, particularmente, a xiitas vai cair? A quantidade de sangue derramado nos últimos ataques sectários, particularmente desde o atentado ao templo em Samara, é pavorosa. As matanças de sunitas por militantes xiitas, geralmente associadas a ministérios do governo, também se tornaram freqüentes.

Um ciclo de violência e vingança foi posto em movimento e não será facilmente brecado. Por isso, a morte de Zarqawi poderá ter um impacto pequeno no curto prazo. Ela não afetará a insurgência nacionalista que tem como alvos americanos e britânicos, e as pessoas definidas como seus colaboradores. Quando os filhos de Saddam Hussein foram mortos, os americanos afirmaram que isto reduziria a resistência. Esperanças similares foram manifestadas quando o próprio Saddam foi capturado, há dois anos e meio. Em ambos os casos as previsões estavam erradas.

A coincidente nomeação, ontem, de novos ministros de segurança melhora a imagem do governo do Iraque. Agora eles precisam controlar os sectários e os matadores em suas próprias fileiras. Zarqawi usou o assassinato para incitar e exacerbar o sectarismo. Sua morte remove o provocador. Cabe ao governo iraquiano remover as conseqüências.