Título: O vôo do elefante
Autor: Eliana Cardoso
Fonte: O Estado de São Paulo, 10/07/2006, Espaço Aberto, p. A2

Quantos elefantes cabem num fusquinha? Quatro. E outros mais, se estivermos na Índia, onde pude contar 15 pessoas num tuc-tuc - veículo de três rodas, menor e mais instável que qualquer meio de transporte brasileiro. Milhões de tuc-tucs circulam por ruas e estradas. Espalham poeira sobre mulheres, cujos "sáris de seda reluzem como curvos pavões altivos". Esbarram em gente descalça. Desviam-se de vacas sagradas. Misturam-se a cabras e cachorros, ônibus coloridos, estampidos e buzinas, num burburinho cheio de vida.

O caos e o entusiasmo definem uma democracia que completa 60 anos e, encantadora, tem uma deidade para cada três habitantes: 330 milhões de deuses encontram abrigo no panteão do hinduísmo. O mais popular é Ganesh, que tem cabeça de elefante e remove obstáculos. Seu veículo é um camundongo.

Fui à Índia para a reunião anual do Conselho de Diretores do Global Development Network, organização que financia pesquisas nos países em desenvolvimento. Num jantar em Délhi ouvi do ministro das Finanças, Palaniappan Chidambaram: "Nossa taxa de crescimento sustentável é de 8,5% ao ano. Em breve será de 10%." Impossível deixar de especular sobre tal afirmação. Será o crescimento indiano passageiro, como os anos do milagre brasileiro na década de 70? Ou duradouro, como na Coréia do Sul e na China?

Desde 1947, quando se tornou independente da Inglaterra, até 1980, a Índia teve um crescimento medíocre, por causa da política econômica orientada para dentro. Ela condenou a indústria a crescer com base num mercado interno estreito. Ao reduzir a possibilidade de ganhos de escala, comprometeu as exportações e a capacidade de inovar. O excesso de regulamentações aumentou os custos de transação. O controle de preços dos aluguéis e as restrições à venda de terras forçaram a migração da indústria para pequenos centros e prejudicaram o investimento em infra-estrutura.

As leis trabalhistas desencorajaram o emprego nas firmas médias e grandes. A Lei de Desenvolvimento Industrial de 1951 deu aos burocratas poder de decidir sobre investimentos e, assim, incentivou a corrupção. O estatuto de 1956 piorou a situação ao reservar algumas indústrias para o setor público e proteger indústrias pequenas cuja tecnologia atrasada emperrava o crescimento da produtividade. As empresas públicas se multiplicaram e dominaram o setor metalúrgico. Juntamente com as restrições às importações, aumentaram os custos de produção. No conjunto, a política econômica tolhia os investimentos em larga escala na indústria e o engajamento no mercado internacional. Impedia o avanço tecnológico e o crescimento da produtividade.

A partir de 1980 o país mudou de política. Ao avanço dos últimos 15 anos o governo do primeiro-ministro Manmohan Singh deve somar mais liberalização, uma reforma do setor financeiro e investimento em infra-estrutura. À frente desse processo se encontram três reformistas convictos e experientes: Manmohan Singh, Chidambaram e o mentor das reformas, Montek Ahluwalia.

Os sinais de expansão são claros. Há avenidas novas e construções por todo lado. A cada mês surgem 5 milhões de conexões celulares. Não vi elefantes nas plantações de chá que cobrem os vales ao pé do Himalaia por onde andei, embora se diga que existam 2 mil no distrito de Soniptur. Vi, isso sim, centenas de monges: todos falavam ao celular ou o traziam a tiracolo.

Mas, por enquanto, o tamanho do setor industrial hindu equivale ao do Brasil ou ao do México, embora a população indiana ultrapasse 1 bilhão de pessoas. E o investimento continua modesto em comparação com a China. A renda per capita ainda é cerca de US$ 1 mil (US$ 3 mil em paridade de poder de compra). Infra-estrutura pobre e fornecimento de energia inadequado limitam a capacidade produtiva. E firmas competitivas no mercado internacional se restringem a alguns setores, como os de têxteis, produtos farmacêuticos e petroquímicos.

O setor de informática - tanto a produção de software quanto a prestação de serviços - é a grande estrela. Transformou a imagem da Índia e criou o frisson que atraiu investimentos e empresários inovadores e definiu o perfil corporativo do país.

A inteligência do camundongo é o veículo de Ganesh, da mesma forma que, no desenho de Disney, é o ratinho Timóteo que ensina Dumbo a voar carregado por uma pluma mágica. Quando se vê sem ela, Dumbo abana as próprias orelhas e se transforma num sucesso de arromba.

De plumas fortuitas e inesperadas a Índia também se valeu para deslanchar o desenvolvimento do setor de informática. A primeira foi o problema do Y2K, na passagem do milênio, quando milhões de computadores tiveram de ser reprogramados e a demanda por serviços de informática deu um salto. E aumentou também com a conversão para o euro das moedas do Velho Continente. Os parques científicos indianos souberam aproveitar a oportunidade.

Mas o mais importante foi a negligência benéfica do governo, que agiu como o ratinho inteligente, pois não introduziu regras e regulamentos para o setor de informática, acreditou no vôo do elefante virtual e investiu na educação científica. Em 2005 a Índia tinha 2,5 milhões de novos universitários por ano, 10% dos quais em engenharia. O número de universitários indianos anuncia mudanças vitais na composição das participações de conhecimento técnico no mundo.

Tamanho elã deve ser visto de pé atrás. Em proporção da população, os EUA conferem quatro vezes mais diplomas em engenharia e informática do que a Índia. Apenas um quarto dos engenheiros indianos está qualificado para trabalhar em multinacionais (segundo estudo da McKinsey). Ainda existem 300 milhões de pobres sem acesso à educação básica e que, portanto, não podem montar no elefante voador. E sem cuidar da saúde dos pobres a Índia pode engolir elefante e se engasgar com mosquito.