Título: De onde virá o dinheiro?
Autor: Washington Novaes
Fonte: O Estado de São Paulo, 09/06/2006, Espaço Aberto, p. A2

Passados os dias de terror criado em São Paulo pelo crime organizado, algumas conclusões parecem evidentes nos comentários e discussões (embora alguns dos envolvidos só aceitem esta ou aquela): 1) É preciso ampliar imediatamente a segurança no sistema prisional; 2) são necessárias diversas modificações na legislação penal, com o mesmo propósito; 3) é preciso implantar com urgência planejamentos que impeçam o domínio territorial de áreas urbanas pelo crime organizado, principalmente nas regiões metropolitanas e, entre estas, as de São Paulo e Rio de Janeiro; 4) é indispensável definir de imediato de onde sairão os recursos para essas tarefas e também para um salto qualitativo nas áreas de educação, saúde, segurança e implantação de infra-estruturas nas zonas periféricas, especialmente as dominadas hoje pelo crime.

O último item é crucial. E quem for discuti-lo esbarrará logo de saída com a argumentação de que a carga tributária no País chegou em 2005 a R$ 754,4 bilhões, ou 38,9% do PIB. O contribuinte não suportaria novos encargos. É verdade. Mas esses números precisam ser confrontados com outros, também gerados pelas políticas vigentes (ou por sua ausência). Por exemplo: ainda no último dia 14, este jornal publicou declaração do secretário-executivo do Ministério da Fazenda, Bernard Appy, de que as "desonerações tributárias" desde 2004 chegam a R$19 bilhões - dinheiro de que o governo abriu mão para beneficiar certos setores. Só com a chamada Lei Kandir, que desonera de impostos exportações agropecuárias, são muitos bilhões anuais, que os Estados reclamam do governo federal, pois isentam também do ICMS, que é um imposto estadual (no ano passado, os Estados conseguiram um ressarcimento de R$ 5,2 bilhões; este ano, somente de R$ 3,5 bilhões - e reclamam muito).

Na área da Previdência Social, como foi comentado neste espaço (28/4), alertam os auditores fiscais que a renúncia a contribuições entre 2003 e 2006 chegou a R$ 33,2 bilhões, enquanto a sonegação teria chegado a R$ 88,8 bilhões. Com o isso o estoque de dívidas de empresas privadas e estatais com a Previdência já está na casa dos R$ 250 bilhões.

Também não pode passar despercebida a questão da guerra fiscal entre Estados, com a isenção de impostos e concessão de outros benefícios para induzir empresas a se instalarem em seus territórios. É um mecanismo que tem significado dezenas de bilhões de reais por ano - recursos que deixam de atender a carências sociais e contribuem fortemente para concentrar a renda (em certos Estados chegam a mais de 100% do ICMS que a empresa deveria recolher). Mas, embora já anunciado muitas vezes, o fim da "guerra fiscal" não acontece.

Não bastasse tudo isso, passa pelo Congresso uma terceira edição do Programa de Recuperação Fiscal (Refis), encaixando emenda em medida provisória que já tramitou pela Câmara. Como informou este jornal no editorial em que se manifestou claramente contra essa terceira edição (21/5, A3), a primeira versão do Refis, em 2000, permitiu que 130 mil empresas parcelassem seus débitos fiscais para pagarem a cada mês o equivalente a 1,5% de seu faturamento. Só que boa parte delas imediatamente se cindiu e transferiu todo o faturamento para uma nova empresa; a anterior ficou só com dívidas, quase sem faturamento - e em algumas o prazo de pagamento, por isso, ficou em 16 séculos. Não bastasse isso, dois terços das empresas que se candidataram não cumpriram nada do acertado. Agora, teriam nova chance.

Questões como essa não apenas agravam a brutal concentração de renda no País. Agravam também a carga tributária, porque é preciso cobrar mais de quem paga - o que é extremamente injusto com quem cumpre a lei, como observou aquele editorial. A situação faz lembrar uma frase do ex-ministro Delfim Neto. Para ele, no Brasil só paga imposto quem não tem um bom contador e/ou um bom advogado.

Mas esse é um problema com graves e profundas repercussões na área decisiva, que é a do orçamento da República. Como não se conseguem recursos suficientes, a dívida pública cresce - era de R$ 813,6 bilhões em março de 2005, chegou a R$ 1,021 trilhão um ano depois - e, com ela, o pagamento de juros. Para sustentá-la o País mantém, segundo estudo do economista Amir Khair, uma taxa real de juros quase 12% acima da inflação, de longe a mais alta entre os países latino-americanos (Peru, 1,7%; Chile, 0,8%; Argentina, menos 0,9%). Na média o juro real (descontada a inflação) entre 26 países "emergentes" é de 1,9%. Se acompanhasse essa tendência, a taxa (Selic) no Brasil seria de 6,1%. E lembra o autor do estudo que uma queda desse porte significaria quase R$ 100 bilhões anuais menos em juros, já que cada ponto porcentual na taxa se traduz em R$ 10 bilhões.

Se pode haver um lado positivo nos recentes dramas urbanos brasileiros, está em suscitar uma rediscussão das políticas públicas - e, com ela, da distribuição dos ônus. Uma dessas discussões terá de envolver, por exemplo - já que a concentração da renda no País é apontada como um dos problemas centrais a enfrentar -, as alíquotas do Imposto de Renda da Pessoa Física. O Brasil já teve, em épocas recentes, alíquotas mais altas para faixas de renda mais elevadas (35%, por exemplo); depois, colocou o limite em 27,5% . É justo que um assalariado com rendimentos de algumas centenas ou milhares de reais por mês se situe na mesma faixa de quem recebe dezenas de milhares a cada 30 dias?

Então, é preciso repetir: a gravidade dos problemas que vieram à tona indica com clareza que precisamos repensar quase tudo. E, no centro, a questão fiscal.