Título: Vitória dos cidadãos
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 09/06/2006, Espaço Aberto, p. A3

Se o Código de Proteção e Defesa do Consumidor - criado pela Lei nº 8.078 de 11 de setembro de 1990 -, sem dúvida um dos diplomas de nosso ordenamento jurídico mais consentâneos à contemporaneidade, tem como princípio básico a proteção do cidadão consumidor, especialmente nas relações negociais em que ele se mostra a parte mais fraca, proteção que é um verdadeiro marco das democracias modernas, não tinha sentido algum que de suas regras protetoras fosse excluído um tipo de relação na qual o consumidor se sente mais desprotegido e impotente, valendo pouco seu direito de reclamação, quando não transformado em mero jus sperniandi. Referimo-nos ao desequilibrado relacionamento dos cidadãos com as instituições financeiras, no qual o hipotético conjunto de direitos e obrigações de cada parte, na prática, resulta no simples "direito de adesão" de uma parte a outra.

Acostumados a uma confortável excepcionalidade, em relação às obrigações - perante o consumidor - a que se submetem as demais empresas comerciais ou de serviços do País (e nisto, aqui desfrutando de privilégio inexistente em qualquer outro lugar do mundo), os bancos entendiam que o CDC não poderia ser utilizado nem invocado pelos consumidores, em razão de conflitos, falhas de atendimento ou abusos dessas empresas, pelo fato de haver uma outra lei específica a regê-las (Lei nº 4.595/64). Dessa forma, por mais que esse setor se situasse entre os grupos que têm recebido o maior número de reclamações, junto aos órgãos de defesa do consumidor, os Procons se viam impedidos de exercer sua função protetora dos cidadãos, nesse campo. Talvez para sacramentar uma jurisprudência que lhes parecia favorável, em 2002 a Confederação Nacional do Sistema Financeiro (Consif) ajuizou, junto ao Supremo Tribunal Federal (STF), uma ação direta de inconstitucionalidade (Adin 2.591), tendo em vista deixar claramente estabelecido que o Código de Proteção e Defesa do Consumidor (CDC) não se aplicava às operações financeiras.

Nestes últimos quatro anos, dois ministros do Supremo agora aposentados (Carlos Velloso e Nelson Jobim) já haviam votado, parcialmente, em favor da tese dos bancos. Mas agora, por 9 votos a 2, o STF decidiu favoravelmente à aplicação do Código nas relações entre bancos e clientes. Dessa forma, os cidadãos que se sintam lesados por cobranças bancárias indevidas, por falhas nas transações eletrônicas dos bancos a que não deram causa - mas têm amargado irrecorríveis prejuízos -, por falhas bancárias em ordens de pagamento, controle de cheques, pelo envio sem solicitação de cartões de crédito, pelo aproveitamento não autorizado de cadastros e quebra indevida de sigilos, pela cobrança exorbitante de taxas, aumentos extorsivos de tarifas e mais uma série enorme de desrespeitos praticados pelas empresas financeiras, poderão dispor do instrumento legal específico, destinado à sua proteção.

Na verdade, a exclusão dos bancos do sistema de proteção aos consumidores, propiciado pelas normas do CDC, significava um confronto ao princípio constitucional que assegura a todos os cidadãos o direito de recorrer à Justiça. Em muito boa hora o Supremo corrigiu isso, ao determinar a improcedência da Adin impetrada há quatro anos pela entidade representante dos bancos. Entre os vários problemas que tem enfrentado o consumidor, em suas relações com o sistema bancário, sobreleva a questão dos juros abusivos, que, a partir de agora, merecerá estudos mais aprofundados dos Procons. Disse a diretora-executiva do Procon-SP, Marli Aparecida Sampaio, para quem juros de 10% a 12% ao mês podem ser considerados abusivos: "Vamos abrir os votos de cada ministro e estudar bem esta questão dos juros, porque até agora não atendíamos reclamações a respeito."

Por sua vez, a coordenadora da Pro Teste - outra entidade de defesa do consumidor -, Maria Inês Dolci, afiança: "Com a improcedência da ação direta de inconstitucionalidade, o STF reafirma a cidadania." E a observação é pertinente, pois, mais do que vitória dos consumidores, essa decisão da mais alta Corte de Justiça do País é uma importante vitória dos cidadãos.