Título: 'Questão racial deve ser somada à social'
Autor: Roldão Arruda
Fonte: O Estado de São Paulo, 09/07/2006, Nacional, p. A13

Surpreendida ontem com as informações de que o Palácio do Planalto decidiu rever seu apoio aos projetos da Lei de Cotas e do Estatuto da Igualdade Racial, optando pela ênfase nas cotas sociais, a ministra Matilde Pereira, da Secretaria Especial de Políticas da Promoção da Igualdade Racial, não se abalou: ela bate firme na defesa dos dois projetos. Em entrevista ao Estado, afirmou que sempre apoiou o critério social para definição de cotas nas universidades, desde que somado ao racial. Também contou que, ontem pela manhã, em conversa com o ministro Tarso Genro, disse estar aberta para o diálogo com os protagonistas deste debate, mas também que considera as cotas para negros e índios um passo indispensável para superar desigualdades no País.

Filha de mãe empregada doméstica e pai guarda noturno, a ministra, de 45 anos, é doutoranda em assistência social na PUC de São Paulo.Veja os principais trechos da entrevista:

Os intelectuais que se opõem às cotas, argumentam que podem provocar o surgimento de movimentos racistas. A senhora não acha que, num país com tanto desemprego, o fato de alguém ser escolhido para uma vaga em função da cor da pele pode fermentar ressentimentos?

Faço o raciocínio contrário. Hoje quando surge uma vaga numa empresa, a propensão é que seja ocupada por um sujeito que não seja negro. Qualquer pessoa, desde que enxergue um pouco, ao olhar para o quadro de funcionários das empresas que operam no País, brasileiras ou de capital internacional, verá que o contingente de brancos é altamente superior ao de negros. Pesquisas realizadas por diferentes organizações confirmam isso. Argumentar que a criação de cotas incitaria ao ódio racial é cegueira, é fechar os olhos para a sociedade brasileira.

Está convencida de que os negros são barrados no mercado?

Sim. Os negros estão fora de muitas funções porque são impedidos. Não é porque são menos capazes, nem porque são preguiçosos ou inferiores, como a história levou a acreditar. Nós, negros, não nascemos escravos, mas ficamos com esse carimbo, enquanto outros imigrantes, os europeus, ficaram com o carimbo de trabalhadores. Tem alguma coisa errada nessa leitura. Quando se propõe a criação de cotas o objetivo é superar as barreiras e permitir a inclusão de um setor da sociedade no mercado.

Outro argumento contrário às cotas é o de que favoreceriam só a elite dos excluídos, os poucos que concluem o ensino médio.

Não concordo. Quando falamos de negros, estamos nos referindo a quase 50% da população do País. A meta é abrir possibilidades de inserção a esse contingente nas universidades e no mercado de trabalho, de forma gradual, combinando políticas universais com políticas afirmativas. Veja o caso do ProUni: foram criadas 200 mil vagas em universidades particulares e já temos cerca de 40 mil afrodescendentes com direito a bolsas de estudo. Poderemos atender um público muito mais amplo no espaço de uma década.

Não seria melhor lutar para que todos tenham mais oportunidades e bons serviços públicos?

A defesa da universalização dos serviços públicos tem marcado a história dos movimentos sociais brasileiros na luta pela melhoria da qualidade de vida, pelos direitos democráticos. Mas isso deve ser combinado com a luta por ações afirmativas, como as cotas. A idéia da universalização não é suficiente para atingir de maneira direta as populações discriminadas ao longo da história.

Como viu as afirmações do ministro Tarso Genro de que o governo vai apoiar a idéia de cotas sociais, em vez de cotas raciais?

O projeto de lei de cotas é do governo. O Estatuto saiu do Congresso, mas com o nosso acompanhamento. Eu disse ao ministro que estou aberta ao diálogo e à negociação. Mas também enfatizei que as cotas para negros e índios constituem passo indispensável para a superação do ciclo de desigualdades. No governo já tínhamos chegado à conclusão de que a questão social tem que ser somada à questão racial e que essa é a melhor equação para o momento atual.

Afirma-se que as cotas raciais e o Estatuto afrontam a Constituição, pois passaríamos a ter direitos de acordo com a cor da pele.

Não vejo essa contradição. A Constituição diz que somos todos iguais perante a lei, mas existe um hiato entre o que está escrito lá e a vida.