Título: Os tremores que vêm da China
Autor: Nicholas D. Kristof
Fonte: O Estado de São Paulo, 09/07/2006, Internacional, p. A25

Nos 17 anos que se passaram desde a sangrenta repressão ao movimento em favor da democracia na Praça da Paz Celestial, a China tem desfrutado de um milagre econômico e notável estabilidade política. Mas meu pressentimento é que esse período de águas plácidas esteja chegando ao fim.

Protestos não autorizados, alguns violentos, contando com a presença de milhares de pessoas, vêm explodindo por todo o país. Pela própria contagem do governo chinês, há hoje mais de 200 manifestações de protesto por dia, desencadeadas por tudo, de dispensa de trabalhadores ao confisco de terras pelo governo. Essas manifestações podem aumentar se, como parece provável, o modelo econômico da China se mostrar menos milagroso nos próximos anos.

Os custos de mão-de-obra estão subindo e a crescente atenção ao meio ambiente vai elevar os custos de produção. O rápido envelhecimento da população chinesa (um problema enorme para as próximas décadas) reduzirá a parcela da população economicamente ativa. Também é difícil sustentar um crescimento anual de 10% à medida que a base vai se tornando constantemente maior.

Tudo isso tende a significar um índice de crescimento um pouco mais baixo no futuro. Alguns dos empregos em manufatura, de baixo salário, podem ser transferidos para países mais baratos como Vietnã, Paquistão e Bangladesh.

A falta de emprego já começa a irritar recém-formados em cursos superiores. Portanto, até mesmo uma desaceleração modesta na taxa de crescimento da China significaria mais frustração econômica e mais motivos para as pessoas protestarem.

O resultado é que eu sinto mais fragilidade no sistema do que em qualquer outra época nos 23 anos que venho visitando ou morando na China. Funcionários do alto escalão do partido dizem que sentem isso, também, e acho que é por isso que os líderes estão tão relutantes em desvalorizar o yuan - porque não querem arriscar provocar fechamento de fábricas, perda de emprego e inquietação social.

Essas manifestações de protesto estão se transformando em parte da rotina diária. Quando eu estava diante do Tribunal de 2ª Instância do Povo em Pequim, onde meu colega do New York Times estava sendo julgado por acusações inventadas de vazar segredos de Estado, um grupo de agricultores apareceu brandindo bandeiras vermelhas e condenando o confisco de suas terras. Eles empurravam um homem de 80 anos numa cadeira de rodas que era suficientemente esperto para chorar sempre que uma câmera se aproximava.

"Somos apenas pessoas comuns sem poder nem dinheiro", gritava o líder dos manifestantes, Jin Xinhua. "Não há nada que possamos fazer a não ser protestar."

É possível interpretar o aumento dos protestos simplesmente como a evolução da China para uma sociedade mais aberta. Alguns dos líderes do Partido Comunista têm argumentado em favor de se seguir o modelo de Taiwan, voltado para mais democracia, e um atrativo para a China é que os comunistas podem muito bem sair vitoriosos em eleições livres se as promoverem.

Evolução, porém, não parece ser a visão de futuro do presidente Hu Jintao, já que ele é um homem que elogiou o modelo político da Coréia do Norte. O problema básico de Hu é que os incentivos mudaram no decorrer dos últimos 12 anos, encorajando mais desafios ao sistema. Como me disse um dissidente, antigamente ficar encrencado significava uma sentença de prisão de 10 anos, sozinho e esquecido. "Agora, se eu for para a prisão", disse ele, "sairei depois de um ano e serei um herói."

É verdade que algumas pessoas estão sendo mandadas para a prisão por mais tempo (como meu colega Zhao), mas pouca gente parece muito intimidada.

"Não estou preocupado", riu Jiao Guabiao, um professor demitido da Universidade de Pequim por escrever ensaios contundentes sobre o Partido Comunista - que continua a escrever. "Se quiserem me prender, que o façam."

O efeito é um aumento da ousadia que está se espalhando por todo o país. Nesta viagem, uma meia dúzia de pessoas me deleitou com histórias sobre o fato de a Segurança do Estado (a KGB da China) adverti-las confidencialmente para se manterem na linha - ao que elas reagiram com zombaria e chacotas.

Esta ousadia é significativa porque no decorrer dos últimos 50 anos os momentos nos quais os chineses se ergueram para exigir uma mudança política ampla (1956, 1976, 1986 e 1989) não foram as épocas em que estavam mais descontentes, mas quando estavam com menos medo. Agora, mais uma vez, eles não estão muito assustados.

Assim, a atmosfera do país me remete ao início de 1989, antes dos protestos da Praça da Paz Celestial, ou à Coréia do Sul e Taiwan em meados da década de 1980, quando os cidadãos começaram a desafiar a ditadura nesses países. Em torno de toda a China, da Tailândia à Indonésia e daí para a Mongólia, a elevação nos níveis de renda e instrução eventualmente levaram a grandes manifestações de protesto exigindo um governo que preste mais contas à população.

Confio no futuro da China e acredito que o país se tornará neste século o mais importante do mundo - depois de um caminho tumultuado. Por enquanto, minha premonição é que o fermento na China vai crescer e o longo período de calma após os incidentes da Praça da Paz Celestial pode estar chegando ao fim.

*Nicholas D. Kristof é colunista do jornal 'The New York Times'

TRADUÇÃO DE MARIA DE LOURDES BOTELHO