Título: A máfia 'endireita' a América
Autor: José Renato Nalini
Fonte: O Estado de São Paulo, 12/07/2006, Espaço Aberto, p. A2

A situação da crescente criminalidade no Brasil pode ser bem pior do que a muitos possa parecer. A revista alemã Der Spiegel publicou recente artigo de Jens Glüsing em que o olhar de fora detecta uma realidade trágica, talvez não assimilada por quem está inserido no olho do furacão. Neste país, o acesso de qualquer pessoa estranha à favela controlada pelo narcotráfico é monitorado pelos menores ¿registrados¿. A meninada é recrutada desde os tenros anos. Eles andam armados com metralhadoras Kalashnikov e são treinados a selecionar o visitante e conduzi-lo até o destino ou a impedir sua entrada.

Em conversa com os menores, o jornalista apurou que ações policiais raramente ocorrem na Favela de Vigário Geral, no Rio. Ela é mais um dos complexos conglomerados urbanos que integra o reino das sombras das gangues do narcotráfico e tem um exército bem aparelhado. As visitas da polícia são previamente anunciadas. Não é diversa a situação nas outras 700 favelas cariocas. São os chefes do tráfico que decidem se haverá instalação de outra linha de força, se a pré-escola abre ou fecha, quem entra ou quem não entra em seu território.

Para o jornalista, o crime organizado está em ascensão por toda a América Latina (AL). O tráfico de drogas fornece os recursos financeiros para que a organização seja cada vez mais eficiente. Por isso, o continente inteiro regride no tempo. Cada vez mais distante a concretização da promessa de integração dos não-incluídos e da edificação de uma Pátria justa, fraterna e solidária.

As respostas pontuais não atingem o verdadeiro alvo. A sociedade não se compenetra de que ela não só tolera, mas estimula a expansão do vale-tudo. Dentro do qual, o crime é apenas uma das faces. Antes disso vêm a perda de parâmetros, o depauperamento da boa conduta, a sordidez aplaudida.

O terreno fértil para o avanço da delinqüência é o esgarçamento da moral. A falência dos valores. A política utilizada como forma de fuga da responsabilidade penal e de enriquecimento rápido. A educação cada vez mais inconsistente e imbecilizante. A falta de políticas públicas de real inclusão dos marginalizados. Propaganda que dá prioridade ao egoísmo e mensagens centradas na consecução de bens da vida mais do que relativos - mas são os que a mídia e a publicidade apontam como essenciais e que, para a mocidade desorientada, passam a constituir o único objetivo.

Para uma sociedade sem perspectivas consistentes e em desalento, a droga representa um apelo cada vez mais sedutor. Triste sociedade a que não consegue mostrar a seus jovens algo mais atraente e prazeroso do que algo chamado droga. Droga mágica, a conquistar, a dominar e a escravizar seus adeptos. O consumo de estupefacientes impregna a delinqüência contemporânea. Não há mais crime desvinculado da droga. Qualquer profissional experiente na área pode testemunhar essa intimidade entre entorpecente - seu uso e seu tráfico - e todas as modalidades delitivas.

A sociedade que continua a produzir infratores cada vez mais jovens culpa o governo e reclama punições mais severas, extinção de regimes de graduação no cumprimento da pena, redução da maioridade penal. Se pudesse, aprovaria a pena de morte. Envolvida nesse clamor e sem assumir sua cota de responsabilidade, ela continua a perder espaço para o tirocínio da organização criminosa. Esta detectou que o vazio existencial de uma cultura consumista, materialista e egoísta é facilmente preenchido por uma participação efetiva num projeto. Ainda que projeto criminoso. Na sociedade dita legal, as crianças não podem ser aprendizes. Baniu-se o trabalho infantil. Experiências como a do menor colaborador no Judiciário foram expelidas em nome da proteção da criança. No crime não há preconceito. As crianças são eficientes soldados. Disputam-se os cargos de assassino menor de idade. É mais lucrativo ser Bin Laden do tráfico do que permanecer num semáforo a pedir esmola, fazer malabarismo ou lavar pára-brisas.

Enquanto a escola é chata e repressora, o tráfico dá responsabilidade e garante boa remuneração. O crime foi mitificado, seus heróis são decantados e cada vitória contra o asfalto é comemorada nas bases. Os heróis infantis de hoje são os chefes da gangue, desapareceram os super-heróis de há algumas décadas. Até as novelas detectaram que o bom caráter é um chato. O povo torce pelo malandro. Vibra com a maldade.

A desenvoltura com que o submundo pode atuar e a burocracia que emperra qualquer atuação pública desequilibram o jogo. Armamentos sofisticados ingressam no País com facilidade. O tráfico não faz licitação, não depende de orçamento. O retorno do investimento é imediato, pois a demanda aumenta. O jovem, ainda que não recrutado para o crime, não acredita na pregação contra a droga. Há um encanto no que é proibido e a violação das regras continua a excitar. Conversa de quem repudia a droga é coisa careta, de panacas ou de babacas. Estes os que ainda têm coragem de dizer alguma coisa. No mais, a síntese da civilização contemporânea é curtição e balada. Sensações cada vez mais fortes, derivativo do nojo em que se transformaram a política e o baixo rendimento na eficiência das instituições.

Se do lixo moral se pode extrair alguma coisa útil, é a conclusão da Der Spiegel de que a disseminação do crime organizado pode pôr um fim na inclinação do continente à esquerda. A desordem nos países que toleram o avanço da delinqüência e do vandalismo comprometerá o êxito da pregação ufanista. Isso já aconteceu na Colômbia, é tendência no México e até na Venezuela. Que isso não nos conforte, porém. A correção de rumos tem um custo excessivo. Não há prenúncios promissores. Infelizmente, as palavras, as comissões, os estudos não fazem cessar o número de vítimas jovens na guerra desigual contra a droga. Vidas perdidas não se devolvem e a esperança, depois de morta, não costuma ressuscitar.

José Renato Nalini é desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo