Título: Xô, responsabilidade
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Fonte: O Estado de São Paulo, 12/07/2006, Notas e Informações, p. A3

No ano passado, o mote era ¿eu nunca soube¿. A partir do ano que vem, se o seu autor permanecer no Planalto, poderá ser ¿nada a ver com isso¿. No fundo, bem pensadas as coisas, dá no mesmo. O presidente Lula, que em momento algum assumiu a responsabilidade pelo que faziam o comando do seu partido e o ¿capitão do time¿ ministerial José Dirceu no tempo do mensalão, é o mesmo que hoje já vai avisando que, no loteamento do seu almejado próximo governo, os titulares de cada pasta, entregue aos respectivos partidos em regime de porteira fechada, serão os responsáveis exclusivos pelo que nelas ocorrer.

Em defesa da chamada verticalização dos cargos distribuídos - em que o partido premiado com determinado ministério ou estatal ocupa todas as suas dependências disponíveis, em lugar da coabitação que prevaleceu nestes anos -, Lula disse ser ¿mais do que justo que o partido que tenha um ministro no governo seja responsável por todo o ministério¿. Disse também que, ¿se tiver qualquer problema, o ministro será o responsável¿. O que espanta nessas palavras é a dupla abdicação que elas exprimem. De um lado, definido que o ministério A será do partido B ou, mais precisamente, do PMDB, a agremiação que escolha os melhores e mais honestos para as funções conquistadas, enquanto o presidente lava as mãos.

De outro lado e mais inquietante, é a delegação plena ao ministro da responsabilidade por ¿qualquer problema¿ no seu feudo. É claro que, se uma instância de primeiro escalão na administração direta ou indireta deixa a desejar, por não mostrar serviço ou por seguir políticas discrepantes da orientação geral do Executivo, o responsável direto por isso é o administrador principal do setor. Ainda assim, toda atividade organizada, na esfera pública ou particular, funciona com base no princípio da cadeia de responsabilidades. Não para Lula: o presidente da República se coloca na condição de inimputável não apenas pelo eventual mau desempenho dos seus subordinados de primeira grandeza, mas pelos ilícitos que eles e sua turma cometerem.

Esse último é o aspecto central da questão, depois que o sistema político petista assombrou os brasileiros ao demonstrar que o proclamado compromisso do seu candidato presidencial com a decência não valia o papel em que foi impresso e que, em matéria de promoção de maracutaias em benefício do seu projeto de permanência no poder, o PT era tão ou mais despudorado do que os políticos sanguessugas que se deixam corromper para enriquecer ou ter mais dinheiro para a eleição seguinte. No pós-mensalão, ainda sob os efeitos do mefítico baixo mundo exposto à luz do sol, a opinião pública tem todos os motivos e mais alguns para se perguntar, antes de qualquer outra coisa, o que, no plano da ética, distinguirá um eventual segundo governo Lula do primeiro.

A julgar pela teoria do alheamento que o presidente acaba de professar e o currículo dos políticos aos quais ele passou a entregar cópias das chaves dos cofres federais, a começar pelos Correios, não há razões para otimismo. Dois universos coexistem em Brasília. De um lado, o ministro de Relações Institucionais, Tarso Genro, conduz a construção do que espera ser um novo paradigma de coalizão de governo. Nele, o PMDB, aliado informal da reeleição, com assento no Politburo da campanha de Lula, não só terá vez e voz nos rumos do governo, mas poderá formar com o PT uma versão abrasileirada da Concertación socialista-democrata cristã que há mais de 15 anos governa o Chile.

É uma tentativa engenhosa de superar o problema estrutural do presidencialismo brasileiro, no qual o titular do governo nunca terá maioria no Congresso se não barganhar o apoio de partidos cujo único interesse é fisiológico, porque os aliados ideológicos ou programáticos não elegem o número de candidatos suficiente para garantir a formação de bancadas hegemônicas na Câmara e no Senado. Mas essa inspiração de origem ¿chilena¿ colide com a dura realidade do cotidiano político nacional, cujos protagonistas querem mesmo saber é do varejo das coisas - o atendimento às suas clientelas e a satisfação dos próprios interesses, sem excluir os pecuniários. E, esquecendo o histórico dos seus coligados, ao eximir-se (irresponsavelmente) de responsabilidade pelo que possa acontecer em seus ministérios, Lula está dando carta branca para que os novos ministros se entreguem às práticas que bem entenderem. Não parece o melhor caminho para chegar à Concertación...