Título: Putin, o grande inimigo da democracia
Autor: Fred Hiatt
Fonte: O Estado de São Paulo, 12/07/2006, Internacional, p. A14

Quando o comunismo desmoronou, em 1991, não se esperava que a democracia triunfasse instantaneamente e em todos os lugares. No entanto, também não se esperava que o outro lado reagisse. Afinal, o que era "o outro lado"?

Contudo, no fim de semana, quando o presidente Vladimir Putin hospeda em São Petersburgo os líderes da primeira cúpula do G-8 (grupo dos sete países mais industrializados, mais a Rússia), o que surpreenderá não é o fato do seu país não ter se tornado uma democracia consolidada, como era esperado há uma década, quando a Rússia foi convidada a se juntar ao grupo. O que é notável - mas tem sido pouco notado - é que Putin se tornou o líder e o emblema de um movimento vigoroso para combater a disseminação da democracia. "Parece que os governos autoritários decidiram reagir", disse o senador republicano Richard Lugar, presidente do Comitê de Relações Exteriores do Senado. Lugar presidiu uma audiência em junho sobre O recuo contra a Ajuda à Democracia, título de relatório por ele encomendado à National Endowment for Democracy (NED, Fundação Nacional para a Democracia). Essa organização privada, financiada pelo governo, promove a democracia no mundo. A NED concluiu que houve um recuo mais pronunciado nos "regimes híbridos", como foram chamados por Carl Gershman, presidente da organização, ou seja, autocracias que mantêm alguns processos democráticos, como eleições e que, no geral, afirmam ser democracias.

Na década de 90 muitos desses regimes toleraram a existência de grupos cívicos defensores da liberdade e dos direitos humanos e permitiram que recebessem ajuda de entidades promotoras da democracia, nos EUA e em outros países. Entretanto, depois que a Revolução Rosa acabou com o regime corrupto de Eduard Shevardnadze, na Geórgia, seguida pela Revolução Laranja, na Ucrânia, Putin e outros líderes decidiram não correr mais riscos.

Concluíram que, como foi observado por Abraham Lincoln num contexto diferente, "um governo não pode ficar permanentemente sendo metade escravo e metade livre", disse Gershman em recente conversa. E assim aceleraram seu assédio contra grupos civis, rádio, partidos e outras vozes independentes - com detenções arbitrárias, proibição de vistos, regras de financiamento impossíveis, etc.

Na maior parte, os regimes alegam que as medidas têm por fim proteger a soberania do Estado, vencer o terrorismo ou atuar contra a espionagem. Uma boa notícia, embora estranha: muitos ainda se sentem obrigados a se descrever como democratas. Mesmo agora, ideologicamente falando, não existiria o "outro lado". Isso dificulta o combate dessas medidas. Um bom exemplo é o relato do repórter do Washington Post, Peter Finn, na semana passada, sobre como o Kremlin acabou com os programas da Rádio Europa Livre e da Rádio Liberdade transmitidos por muitas rádio russas, sem que houvesse proibição formal, porém, importunando, insinuando ou ameaçando revogar licenças.

E os ditadores ressurgidos estão aprendendo um com o outro. Em janeiro Putin assinou lei regulamentando as organizações não-governamentais, que dará a 30.000 burocratas a opção de revogar o registro de qualquer grupo incômodo.

Agora, Hugo Chávez, na Venezuela, e Robert Mugabe, no Zimbábue, estão insistindo em uma legislação similar. A China teria enviado pesquisadores para o Usbequistão e outros ex-Estados soviéticos para comparar medidas defensivas contra a democracia: enquanto isso, o ditador da Bielo-Rússia, Alexander Lukashenko, "teria adquirido da China a mais recente tecnologia de controle e monitoramento da internet, quando esteve em Pequim, em 2005", de acordo com relatório do NED.

O homem que ajudou a provocar tudo isto, o presidente democrático da Geórgia, Mickhail Saakashvili, esteve em Washington semana passada e advertiu que Putin e outros como ele podem estar interessados em promover o recuo da democracia na Geórgia, Ucrânia e outros. Bush pareceu entender.

Putin, de fato, está fortemente empenhado em eliminar a Geórgia democrática, país com quase 5 milhões de habitantes, na fronteira com o sul da Rússia. Putin proibiu importações de vinho, água mineral e outros produtos da Geórgia; está manipulando os separatistas nesse país. O sucesso de Saakashvili, promovendo o crescimento econômico e reduzindo a corrupção, pode ser um exemplo muito perigoso para Putin.

Uma pergunta chave na cúpula será se os líderes do G-7 deixarão claro que a política de prejudicar democracias vizinhas não é aceitável. A França e Alemanha deverão relutar contra interferência nos interesses comerciais mantidos com a Rússia, e não com um pequeno país ao sul. Assim, caberá a Bush fazer algo. Saakashivili parece ter passado a mensagem quando entregou a Bush a fotocópia de uma carta de 1936, descoberta nos arquivos da KGB. Essa carta, escrita à mão por líderes de um povo independente da região montanhosa de Kevsureti, estava endereçada ao Grande Governo Americano. Nela os líderes deploravam os bolcheviques invasores que forçaram os habitantes da localidade a viver em fazendas coletivas e os impedia de praticar sua religião. "Esperamos sua ajuda. Vocês são os únicos que podem..."

A carta nunca chegou às mãos de Franklin Roosevelt e todos os signatários foram assassinados pela KGB da época. Os tempos mudaram, graças a Deus. Mas a história não terminou e a disseminação de democracia não pode ser sempre colocada no piloto automático.

*Fred Hiatt é editor da página de editoriais do 'Washington Post'