Título: O novo Supremo
Autor: Márcio Thomaz Bastos
Fonte: O Estado de São Paulo, 21/06/2006, Espaço Aberto, p. A2

Poucas instituições brasileiras se confundem com a República de maneira tão forte como o Supremo Tribunal Federal (STF). O Supremo surge como o tribunal republicano por excelência. Para alguns, trata-se do sucessor do Poder Moderador exercido pelo imperador. Afinal, desde a primeira década de sua existência, o STF logo assume o papel de controle sobre os outros dois Poderes, enfrentando a tendência constante no Brasil de hipertrofia do Executivo.

Logo o Supremo se consolida - e para isso foi fundamental a participação de Rui Barbosa com seus numerosos habeas-corpus - como grande defensor das liberdades e garantias individuais. Este papel do tribunal é tão relevante que, sempre que o País passou por períodos de exceção, como no caso do Estado Novo ou da ditadura militar, o Executivo se viu forçado a intervir no STF, pois enxergava ali um foco de resistência às práticas antidemocráticas.

Olhando para a história do Supremo se pode dizer com tranqüilidade que ele foi forjado pela história política brasileira tanto quanto a forjou. Isto pode ser atribuído principalmente ao fato de não se tratar de órgão meramente técnico, mas de órgão político, que é chamado muitas vezes para se posicionar politicamente sobre aquilo que Dworkin chama de hard cases: casos nos quais o direito não oferece apenas uma resposta correta, mas várias opções tecnicamente sustentáveis. Nestes casos, o juiz faz uma opção política para poder decidir.

Muitas vezes se nota que, não sendo possível produzir o consenso para a elaboração de uma norma constitucional, o constituinte opta por um texto vago, transferindo a definição política para o STF.

Com a Constituição de 1988 - que incorporou uma série de novidades tanto na reformulação do Estado, como no aumento da participação popular em discussões de políticas públicas, sobretudo por meio do Judiciário -, o papel do Supremo ganha novos contornos. Os já mencionados hard cases proliferam com a incorporação de novos direitos à Carta e o STF passa a ser um ator fundamental na definição de políticas, interagindo com os demais Poderes com alto grau de protagonismo nas decisões políticas do País.

Tendo em mente este papel político do STF, faz-se necessária uma defesa vigorosa dos atuais mecanismos de indicação de ministros. O mecanismo, vigente sem grandes alterações desde o início da República, consiste na nomeação feita pelo presidente da República e aprovação por maioria absoluta do Senado. Vale lembrar que o quórum qualificado para aprovação de ministros no Senado é inovação da Emenda nº 45 (Reforma do Judiciário), que contou com o decisivo apoio do governo federal.

Este mecanismo é vital para que não se transforme o órgão num colegiado de tecnocratas, o que seria absolutamente contraditório com o protagonismo na cena política atribuído ao STF pela Carta de 88. O risco, muitas vezes comentado, de aparelhamento do Supremo por um determinado presidente é controlado justamente pela necessidade de aprovação da indicação pelo Senado Federal, que, se não tem o hábito de rejeitar indicações, exerce um papel dissuasório na eventual intenção do Executivo de realizar indicações inapropriadas.

O poder do presidente de indicar ministros para o STF não é exclusividade brasileira. Muitos países, como os Estados Unidos, têm mecanismos muito semelhantes. O presidente americano Franklin Roosevelt, por exemplo, como resposta à grave crise por que passava o país no início da década de 1930, iniciou um amplo programa de reformas, chamado New Deal. Este programa contou com forte objeção da Suprema Corte, que via nele indevida ingerência federal sobre os Estados. Foi somente quando Roosevelt pôde nomear um novo ministro que a Corte modificou sua interpretação, possibilitando a implementação de uma das mais bem-sucedidas políticas públicas da História mundial.

As indicações feitas pelo Executivo são a única participação da vontade popular na composição do Poder Judiciário. Este processo possibilita que o Supremo seja permeável às mudanças políticas da sociedade. Os presidentes deixam a marca das posições que representam - e que se mostraram majoritárias num dado momento histórico - na formação da jurisprudência com a nomeação de ministros. Somente em momentos muito específicos da História política nacional poderiam ter sido indicados ministros como Vitor Nunes Leal ou Evandro Lins e Silva.

Neste contexto, ganha relevância a análise das indicações feitas pelo presidente Lula. As três primeiras indicações - Cezar Peluso, Carlos Brito e Joaquim Barbosa - trouxeram três juristas com perfis bastante distintos, representado a magistratura, o Ministério Público e a advocacia, um deles tendo ainda o fator histórico de ser o primeiro negro a ocupar um assento na Corte. Posteriormente, o ministro Eros Grau trouxe o peso da academia e de seu engajamento político. O ministro Lewandowski, também professor-titular da USP, chegou com sua experiência como desembargador e com seu trabalho reconhecido na defesa intransigente dos direitos humanos. Por fim, temos agora a posse da ministra Carmen Lúcia Antunes Rocha, aumentando a presença feminina no tribunal e aportando sua firme atuação na defesa do Estado brasileiro.

Costumo referir-me à criação do Conselho Nacional de Justiça como sendo a conclusão do processo constituinte. Ao olhar para o Supremo e sua composição atual - incluindo os cinco remanescentes -, tenho o mesmo sentimento: este é o STF imbuído do espírito democrático e arrojado da Carta de 1988. A formação plural não traz nenhum desvio ao compromisso de todos os 11 atuais ministros com os princípios básicos da Constituição: o respeito à dignidade humana e a diminuição das desigualdades.

Márcio Thomaz Bastos, advogado criminalista, é ministro de Estado da Justiça