Título: Inspetor de reeleição
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 21/06/2006, Notas e Informações, p. A3

Será assim a rotina do presidente-candidato a partir de 1º de julho, quando os detentores de mandatos executivos aspirantes à reeleição ficam proibidos de inaugurar obras para não utilizarem instrumentos de conquista de votos disfarçados de atos administrativos: de segunda a sexta-feira, Lula vai fazer campanha pelo País afora. Nos sábados e domingos, também. Ou seja, mais do mesmo que vem fazendo em regime de dedicação praticamente exclusiva desde 1º de janeiro de 2003. Para burlar as normas destinadas a promover a igualdade de oportunidades eleitorais entre incumbentes e desafiantes - sabendo-se que os primeiros gozam de vantagens intrínsecas à sua condição -, o presidente começou a montar o seu espetáculo de aparente respeito à lei na reunião de segunda-feira com a sua equipe política.

No papel de arauto da enganação, o ministro Tarso Genro contou que o chefe determinou que separassem rigorosamente as suas atividades presidenciais dos seus compromissos eleitorais. Não há razão para duvidar que ele tenha dito o que lhe foi atribuído, mas as situações farsescas são isso mesmo: nelas se falam coisas que os interlocutores sabem que significam algo diferente, ou mesmo o oposto do que parecem. No caso, a separação exigida por Lula significa uma ordem para o seu pessoal armar um estratagema que lhe permita ser candidato 7 dias por semana e não apenas nos 2 anunciados. Desse modo, os juízes eleitorais mais afeitos à letra do que ao espírito da lei tenderiam a arquivar as previsíveis contestações da oposição. É como se devem ler as palavras do ministro Genro: "A legislação eleitoral exige dos gestores um cuidado muito intenso."

O cuidado consiste em navegar pelos meandros da lei: dado que ela proíbe a presença de candidatos em inaugurações (apenas visitas a obras já inauguradas), Lula se absterá de fazê-lo, mas, dado também que a lei os autoriza a inspecionar obras em andamento, Lula o fará com redobrado empenho, servindo-se, naturalmente, da infra-estrutura ao dispor dos presidentes da República. Segundo Genro, as "inspeções de trabalhos", "para valorizar as ações do governo, seriam feitas com ou sem eleições". Então, tá! como se diz em linguagem corrente. Há mais, porém. Lula inaugura muito menos obras reais do que a sua operação reeleitoral faz crer. Anteontem, tipicamente, ele inaugurou na Bahia uma unidade do Centro Federal de Educação Tecnológica. O nome dá idéia de coisa séria. Pena que a escola não tenha mesas nem cadeiras.

O presidente, já se observou neste espaço, inaugura intenções e criou uma nova modalidade atlética: o lançamento de pedras fundamentais. Na semana passada, lançou a pedra fundamental de um complexo petroquímico no interior do Rio de Janeiro, em terreno que a Petrobrás ainda não comprou, e que deverá começar a funcionar apenas em 2012. Ontem, repetiu a dose numa futura usina de biodiesel no interior do Rio Grande do Sul. O que não o impede de tratar como realizações efetivas, nos seus discursos, o que mal saiu, ou ainda nem saiu, do papel. No mundo encantado do lulismo, pode-se dar o primeiro pingo de solda em um gasoduto cuja licitação só seria anunciada na semana seguinte. Este ano o candidato-presidente foi a 14 inaugurações - menos da metade dos 31 lançamentos ou visitas a obras em curso que mereceram a sua presença.

A única obra a que Lula se entregou de corpo e alma desde o seu primeiro dia no Planalto foi a da sua permanência ali por mais quatro anos. Como assinalou apropriadamente o procurador-geral da República, Antonio Fernando de Souza, a continuidade do projeto petista de poder engendrou a sofisticada organização criminosa que produziu o mensalão. E quem, se não o número um do partido, seria o maior beneficiário dessa lambança? A obsessão reeleitoral a qualquer preço, a marca de Caim da biografia do sindicalista que outrora pregava a ética na política, constitui a singularidade dessa segunda experiência brasileira no gênero. No mundo inteiro, candidatos a novos períodos de governo dificilmente deixam de tirar proveito de já estarem ali. Nos últimos 50 anos, por exemplo, só 2 dos 7 presidentes americanos que pleitearam um segundo mandato não tiveram êxito (Jimmy Carter e Bush-pai).

Mas nenhum dos 5 bem-sucedidos - nem mesmo o notório Richard Nixon, afinal obrigado a renunciar pelo que fez para ser reeleito - se compara a Lula em matéria de fingir que governa enquanto cuida de suas ambições.