Título: Sai a insurgência, entra a anarquia
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Fonte: O Estado de São Paulo, 03/06/2006, Internacional, p. A32

O presidente americano, George W. Bush, nos disse que a retirada das tropas do Iraque é uma questão que o seu sucessor terá de enfrentar - não ele. Eu não penso assim. Bush não vai ter o luxo de passar o Iraque adiante. Como se pode ver, a insurgência no Iraque está em seus "últimos estertores" - exatamente como disse o vice-presidente Dick Cheney.

Infelizmente, em muitas regiões ela está sendo substituída pela anarquia e não pela democracia. E não se acredite que o povo americano vai tolerar mais dois anos e meio pajeando a anarquia em vez de ajudar no parto da democracia.

O relatório de que marines (fuzileiros navais) americanos estiveram envolvidos num massacre de iraquianos na cidade de Haditha - que o Pentágono precisa esclarecer rapidamente - é um lembrete trágico de que uma ocupação estrangeira por forças americanas não pode continuar por anos.

A maioria dos soldados americanos no Iraque fez um trabalho heróico, mas ocupações que se arrastam podem acarretar Hadithas.

Neste momento estamos pagando por todos os descaminhos da equipe de Bush no Iraque: permitir saques depois da queda de Bagdá, desmantelar o Exército iraquiano sem uma força de segurança alternativa ou tropas americanas suficientes no local, promover a cultura da tortura em Abu Ghraib e depois permitir que a política no Iraque ficasse à deriva por meses sem qualquer resultado.

Tudo isso criou um vácuo de segurança que permitiu a proliferação de uma galeria perversa de milícias sectárias, esquadrões da morte, gangues e agentes da Al-Qaeda em Basra, Bagdá e no Triângulo Sunita. O resultado final: apesar de hoje a maioria dos sunitas iraquianos fazer parte do governo, isso não trouxe mais estabilidade. Isto porque entre as milícias sectárias que hoje matam os civis umas das outras, num círculo vicioso de retaliação, e a Al-Qaeda simplesmente explodindo aleatoriamente civis iraquianos, o novo governo não pode avançar. São muitos os iraquianos paralisados pelo medo.

Na verdade, tem havido uma mudança sutil, mas importante, na violência no Iraque. A principal inimiga em muitos lugares não é mais a insurgência sunita. É a anarquia. Mini-guerras de todos contra todos.

Como reportou a BBC, de Basra, na quarta-feira: o primeiro-ministro Nuri al-Maliki "declarou estado de emergência de um mês em Basra, que tem sido assolada por confrontos sectários, anarquia e rivalidade de facções". É o que acontece num vácuo de segurança.

Quando esse tipo de loucura miliciana se estabelece, ele é muito difícil de ser desmontado. Os soldados americanos não podem fazê-lo, porque isso exigiria revistar casas, bairro por bairro. Somente um Exército nacional iraquiano coeso poderia. E este só pode ser o produto de um verdadeiro governo de unidade nacional, no qual todos os partidos sintam que têm uma parte justa do bolo e estejam comprometidos em investir num Exército iraquiano - e não em sua própria milícia.

E um governo de unidade nacional como esse só pode ser produto de líderes do Iraque que decidam que amam seus filhos mais do que se odeiam uns aos outros. Esta é a questão mais importante que os iraquianos precisarão responder. Ela não pode mais ser evitada.

Sendo assim, é hora de os Estados Unidos começaram a falar de "prazos." Muitas facções iraquianas acham que poderão simplesmente continuar em disputa entre si por pequenas vantagens enquanto o país pega fogo, mas que o Exército americano oferece uma base de segurança para impedir o caos total.

Os partidos iraquianos precisam saber que não vamos ser manobrados dessa maneira para sempre.

Somente um Iraque capaz de se unir e agir com pulso firme pode esmagar essa cultura de milícias.

Salvar o Iraque ainda é uma questão de enorme importância - por si e pela região, que está diante de duas grandes tendências. Uma é a explosão populacional, produzindo milhares de jovens à procura de trabalho. A outra é uma enorme explosão de lucros do petróleo.

Hoje, muitos regimes árabes autoritários estão usando esses lucros do petróleo apenas para impedir a explosão de suas populações - na forma de empregos públicos, comida e combustível subsidiados - e não para educar e capacitar sua juventude para o século 21.

Mas quando os preços do petróleo caírem - isso terminará ocorrendo - e essas populações continuarem aumentando, veremos explosões sociais desestabilizadoras por todo o mundo árabe. Seria muito útil ter um modelo diferente instalado no Iraque antes que isso aconteça.

Mas o tempo é curto e o inimigo é único. Não estamos perdendo o Iraque para o vietcongue (os nacionalistas tradicionais) iraquiano. O Iraque tem um governo nacionalista livremente eleito.

Não, estamos perdendo no Iraque para teocratas sectários, fascistas islâmicos e tiranos locais e regionais, que têm uma única coisa em comum: a crença de que os Estados Unidos e seus aliados iraquianos devem falhar, que não querem permitir que a modernidade e a democracia criem raízes no Iraque.

Se isso suceder será uma tragédia global, mas é difícil combater um inimigo cuja única preocupação é que você perca, e não o que acontecerá depois. Isto é impossível, porém, sem líderes iraquianos que possam agir com firmeza.

Não podemos ficar pedindo aos americanos que sacrifiquem seus filhos por pessoas que se odeiam mais do que amam seus próprios filhos.