Título: Outro dia perdido na frente do Deic
Autor: Marcelo Godoy
Fonte: O Estado de São Paulo, 13/07/2006, Metrópole, p. C1

Naquela região da zona norte de São Paulo, não seria exagero dizer que, de cada três cidadãos parados na calçada, três usam óculos escuros HB e uma pistola na cintura. "Aqui, 90% dos clientes são polícia. O resto é transeunte, ou algum advogado que vem fazer visita a preso", diz José Cristóvão Souza, dono do Bar Amarelinho. O estabelecimento fica na frente do Departamento de Investigações sobre o Crime Organizado (Deic).

Souza está tiririca da vida. A cada onda de ataques do PCC, o negócio vai de mal a pior. Não saiu ontem o misto quente de R$ 2,30 nem a mortadela com queijo de R$ 2,80. Ninguém foi tomar café nem lanche. Uma penúria. Souza desabafou: "Com esse bafafá, ninguém mais encosta aqui, tá todo mundo com medo", disse o comerciante, minutos antes de abandonar definitivamente o posto para ir jogar futebol. "Só fico porque aqui ninguém mexe comigo. Mas com esse clima, quem vem aqui beliscar alguma coisa?"

"Saíram todos na hora do almoço", lamenta dona Maria, que vende salgados, refrigerantes e salada de fruta há 15 anos na parte de baixo da escadaria de cimento do Deic. "Costumo nem vir quando tem confusão. Não tem ninguém. Na outra vez, nem vim no dia seguinte."

Ontem, para piorar, bloquearam de novo o trânsito na frente do Deic, deixando só uma pista livre. O isolamento do prédio foi providenciado por motivos de segurança, em razão dos novos ataques contra alvos da polícia.

Isso já tinha sido feito em maio, na segunda-feira em que São Paulo parou. Para os policiais, o dia também prometia ser longo.

Assim, permaneceram às moscas, em mais um dia de PCC colérico, os restaurantes O Caçador e Do Gordo, freqüentados pelos policiais. E as imediações ficaram uma pasmaceira só: ninguém vadiando na praça Mashiac Now, vizinha do departamento de polícia, ninguém interessado no picolé de R$ 0,60 do carrinho da sorveteria Di Terni. Na Rua Doutor Soares de Gouveia, as crianças jogavam futebol e andavam de bike na rua.

Num sobrado da Rua Urupiara, a uma quadra dali, a avó se balançava despreocupadamente com os netos na rede, na garagem. "O sistema está falido", discursou a avó, a fisioterapeuta Iolanda Dionísio da Silva, acariciando os netos Danilo, de 3 anos, e Giovanna, de 2 anos. "Infelizmente, há policiais que se envolveram, assim como advogados. Gostaria que os militares assumissem a situação, junto com a polícia. Mas eu não tenho medo, não vou ficar escondida. É isso que eles querem, que a gente fique com medo", afirma Iolanda.

"Sujeira não escolhe cor." É a frase que se lê estampada no outdoor do sabão em pó, na esquina da Avenida Zaki Narchi com a Rua Urupiara. Lida às 17h22 de ontem, ali da calçada do Deic, a frase pareceria sarcástica - especialmente se considerássemos as calças amarelas de uniforme dos dois presidiários ligados por uma corrente que eram enfiados num camburão, na frente da delegacia.

Logo adiante, um policial "encoletado", com uma submetralhadora debaixo do braço, comia um cacho de uvas niagara perto da árvore com uma gaiola sem grades, usada para alimentar os pássaros da região - sanhaços, sabiás, maritacas, tico-ticos. "Os hômi tão na rua, é?", pergunta o distraído sorveteiro ao repórter de TV. "Tá acontecendo alguma coisa?"