Título: Os pais da cana brasileira
Autor: Angélica Santa Cruz
Fonte: O Estado de São Paulo, 02/07/2006, Economia & Negócios, p. B6

A cada vez que um brasileiro põe açúcar no cafezinho, vira um gole de cachaça ou enfia o pé no acelerador de um carro bicombustível tem chances enormes de estar consumindo a criação de dois descendentes de japoneses caladões, afáveis e protagonistas de uma daquelas histórias anônimas que o cinema adora contar. Sizuo Matsuoka e Hideto Arizono inventaram e depois salvaram uma variedade de cana-de-açúcar chamada RB - sigla de República do Brasil - que tem a seguinte importância: é 60% da cana cultivada no País, duplicou a quantidade de mudas plantadas por hectare, diminuiu à metade o impacto ecológico das plantações e gerou muita riqueza.

Matsuoka e Arizono não ficaram ricos. Moram em Araras, interior de São Paulo, acreditam que não fizeram mais do que a obrigação e só agora começam a ter reconhecimento entre seus pares, os cientistas. Mas, sempre que avistam canaviais cheios de RB, têm lá seus pensamentos poéticos. "Eu me sinto como um compositor que ouve as pessoas assoviando as músicas dele na rua", define Arizono, o mais novo e falante da dupla.

No mundo das ciências, assim como no das idéias, é difícil dizer quem criou o quê. A cana mais plantada hoje no Brasil foi desenvolvida com a ajuda de outros cientistas e técnicos. Mas não há dúvidas de que só foi inventada e preservada pela insistência, quase teimosia, de Matsuoka e Arizono, dois ex-funcionários públicos que se meteram a cruzar mudas para chegar a exemplares geneticamente superiores no extinto Instituto do Açúcar e do Álcool (IAA) - e depois continuaram suas experiências na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).

O Brasil tem hoje 5 milhões de hectares de canaviais que em 2005 renderam R$ 40 bilhões e estão entre as grandes apostas da agricultura, mesmo agora, com o setor em crise. As canas RB dominam solenemente essas áreas. No outro naco, em 39% dos plantios, estão as do tipo SP. No 1% restante, está a IAC, uma cana mais nova.

Variedades de cana funcionam mais ou menos como modelos de carros. Aquelas plantas que chegaram ao Brasil com os portugueses e foram a base da formação econômica nacional não existem mais - a não ser em bancos de germoplasma. E os novos tipos são batizados com uma sigla que indica as instituições onde foram criados e números que mostram o ano em que foi feito o cruzamento e a série. Cada nova planta precisa ter alto teor de sacarose, resistência a doenças e possibilitar a colheita o quanto antes. Os agricultores escolhem a cana que vão plantar levando em conta o tipo de solo e o clima. Mas, do ponto de vista científico, as variedades são concorrentes.

As diferenças entre a RB de Matsuoka e Arizono e sua principal rival já começam do começo. A SP, sigla de São Paulo, foi inventada na Copersucar - que reúne as maiores usinas do País - e saiu das tentativas de vários pesquisadores que se alternaram por anos e contaram com orçamentos milionários. Além de ter paternidade reconhecida, a RB foi desenvolvida na dureza financeira do IAA. E, quando o governo Collor deu o golpe final na morte lenta do instituto - em março de 1989 - , ela foi salva na raça.

Enquanto as portas do IAA eram lacradas, Matsuoka e Arizono iam trabalhar todos os dias, já sem receber salário, para tentar arrumar maneiras de salvar a variedade. "Eu brincava que ele ia acabar trancado lá dentro, com os móveis", conta a mulher de Matsuoka, Nirinha Ferreira Matsuoka.

A dupla pensou em abrir uma fundação ou repassar as mudas para a Embrapa. Mas escolheu o caminho mais rápido e, na prática, eficaz: dar as plantas a usineiros. Todos os dias, telefonavam para equipes técnicas de usinas para falar da RB."Uma vez, um técnico me disse: a Copersucar não conseguiu desenvolver uma cana assim, como um bando de funcionários públicos ia conseguir? Ele viu e falou: vocês fizeram!", lembra Arizono. Em meses, cinco usinas de São Paulo iniciaram o plantio - e a RB se alastrou pelo Brasil. Matsuoka e Arizono foram trabalhar na UFSCar.

SEM LOUROS OU DINHEIRO

A saga dos pais da cana brasileira impressiona por sair de um amontoado de improbabilidades estatísticas. Sizuo Matsuoka é o terceiro dos 10 filhos de um casal que saiu do Japão no período entre guerras para trabalhar em lavouras de São Paulo. Só estudou por uma conta esquisita do destino: o irmão mais velho foi trabalhar, o outro casou. "Eu era o próximo e fui estudar. Mas os meus irmãos mais novos também foram para a lavoura", conta. Matsuoka cursou Agronomia e, aos 24 anos, entrou na Fitopatologia porque era o único departamento que oferecia bolsa de estudo. Encontrou três linhas de pesquisas: a de doenças da cana, videira e moranguinho. Achou a terceira exótica e a segunda, desconhecida. Por exclusão, ficou com a cana.

Hideto Arizono é um dos sete filhos de imigrantes - o pai andou pelos garimpos do Brasil até desistir de procurar ouro e virar agricultor. Também foi o único de casa a conseguir estudar. Fez um curso técnico de Agronomia que lhe deu a rara habilidade de identificar os tipos de cana em uma olhada.

No IAA, Matsuoka era o coordenador nacional de melhoramento genético e chamou profissionais de nível médio para dar apoio aos agrônomos. Arizono foi na leva, se destacou rapidamente e, sob protestos de colegas, ganhou atribuições reservadas a quem tinha curso superior. "Não é o conhecimento que dá o raciocínio lógico. Ele tinha essa habilidade rara", explica Matsuoka. "Tenho muita gratidão por ele ter acreditado em mim", diz Arizono.

Cada ciclo de criação de novas variedades dura de 10 a 12 anos - e Matsuoka e Arizono entraram nesse mundo de tempo arrastado e resultados incertos com salários de funcionários públicos. Viviam numa dureza danada."Andei por 16 anos no mesmo carro", lembra Arizono. No auge das dificuldades, ele já não conseguia manter as filhas na melhor escola da cidade e apelou: tentou se eleger vereador, pelo PMDB. Era tão tímido que não conseguia discursar. "Me colocaram em um palanque onde eu teria três minutos para falar. Não consegui. Fiquei horas com muita dor na barriga", lembra. Teve 26 votos. "Eu votei nele!", avisa Matsuoka.

Apesar de suas conseqüências, o trabalho da dupla demorou a ser visto como ciência. Produzindo conhecimento que beneficiava diretamente empresas privadas, em pleno regime militar e justo para um setor que herdou o estigma de monocultura associada ao atraso, eram vistos no meio acadêmico como prestadores de serviços.

Seguiram adiante com um rigor que explicam por meio da origem japonesa. "No final dos anos 70, a gente estava com zero de RB cultivadas. Eu disse: não encerro a carreira sem uma variedade nova. Não admito essa derrota. É o lado japonês. A gente fechou o ciclo seguinte em nove anos", diz Arizono.

A RB gerou riqueza difícil de calcular, mas incontestável. No Brasil, a lei que garante royalties para cultivares foi aprovada em 1995 - e 35% da cana RB foi distribuída antes disso, de graça, para usineiros. Hoje, as novas levas garantem uma fatia de verbas para a UFSCar. "Geramos muita riqueza e nos orgulhamos disso. Mas o que sou devo às universidades públicas, que me formaram. Não me sentiria à vontade de cobrar por isso", diz Matsuoka.

Quando estavam prestes a se aposentar na USFCar, Matsuoka e Arizono foram descobertos pelo Grupo Votorantim e viraram sócios da CanaVialis, empresa de melhoramento genético que faz em escala dez vezes maior o que eles fizeram por décadas. Foram indicados por usineiros que sabiam de seus serviços. "O grupo investiu na área depois de encontrá-los. Matsuoka é um pesquisador refinado. E Arizono é um cientista dotado de muita intuição. Olha uma planta e aposta que o cruzamento dela vai dar certo", diz o cientista Fernando Reinach, diretor-executivo da Votorantim Ventures.