Título: Onde o tráfico não se esconde
Autor: Marcelo Godoy
Fonte: O Estado de São Paulo, 02/07/2006, Metrópole, p. C4

Crianças sobem e descem a viela sem se importar com o revólver 38 nas mãos do traficante de apenas 16 anos. A seu lado, outro jovem, de 19, carrega uma pistola. Os dois trabalham numa das várias bocas-de-fumo que funcionam na zona leste de São Paulo. Lá, onde o crime não precisa se esconder, o tráfico é feito às claras, no meio da rua esburacada, aberta sem qualquer planejamento no bairro ocupado. É um dos tantos pontos-de-venda de droga sob domínio do PCC.

O movimento não pára um minuto. Compradores vão e vêm nos becos espremidos por barracos em busca de pedras de crack, pó (cocaína) e parangas de maconha. São geralmente moradores da região e econômicos nas palavras.

- Quer o que hoje, negão?, pergunta o jovem traficante ao avistar um rapaz negro.

- Duas parangas, ele responde, estendendo R$ 10,00.

- E você?, pergunta a um ruivo que não pára de tossir.

- Duas pedras, um pó, uma paranga.

Os "meninos", como jovens traficantes são conhecidos na comunidade, buscam as drogas numa espécie de pochete azul que fica grudada ao peito do responsável pela boca. E as vão trocando por notas de R$ 10,00, R$ 20,00, R$ 50,00, trazidas por usuários de várias idades. Cada pedra custa R$ 5,00, uma porção de cocaína, R$ 10,00, a de maconha, R$ 5,00. A "bolinha", porção menor de maconha, é vendida a R$ 1,00.

Roberto, de 19 anos, carregava a pochete na tarde em que o Estado acompanhou o movimento do tráfico na região do Sapopemba. Um dos responsáveis pela boca, ele conta que "faz" cerca de R$ 3 mil por turno - das 8 às 20 horas. Quando abandona o posto, que só retomará quatro dias depois, é rendido por outra turma.

O stress, porém, é constante. Conversando com a reportagem, ele não parava um minuto de olhar para cima e para baixo da viela. "Aqui o bagulho é doido. São 12 horas de tensão, ligado na polícia e enrolado na oposição (inimigos)."

Por ali, passam não só carros de polícia - naquele dia haviam sido três - como alunos voltando da escola, moradores vindos do trabalho, compradores de droga que preferem subir a pé a viela. "Para a comunidade, tudo isso é cotidiano", explica uma líder comunitária que pediu para não se identificar. "E não é que as pessoas aceitem, mas aprenderam a conviver."

FIRMA

Mão-de-obra para o tráfico nunca falta. A ponto de, em algumas áreas da periferia, a palavra "trabalhar" confundir-se com servir nas biqueiras. Em muitas delas, é comum haver lista de espera - cheia de jovens com baixa formação e sem perspectivas, que vêem no tráfico opção e nos traficantes, modelos de ascensão social. Todos recrutados cada vez mais cedo para a "firma".

Roberto começou aos 14 anos, quando vivia em Cidade Tiradentes, outro bairro da zona leste. Diz que pensa em, no futuro, "arrumar negócio melhor". Mas segue porque "dá pra tirar um dinheiro". O salário ele não revela - diz apenas que fica entre R$ 1 mil e R$ 2 mil. E aprendeu a conviver com o risco. "Nóis corre quando eles aparece", diz, referindo-se à polícia. O medo é ser preso ou ter de obrigar o traficante a "fazer acerto". Ou seja, ser trocado por dinheiro. Por ali, sobram relatos sobre ação de bandas podres nas polícias Militar e Civil. " Todo mundo sabe: se você tem dinheiro, não fica preso", diz outro jovem, de 20 anos, que na boca-de-fumo tem função de abastecer a pochete. Se perderem a droga, terão de pagar - geralmente trabalhando sem receber. E se ele já foi pego? "Nunca. Eu uso a cabeça. Não bebo, não fumo, não uso droga", diz, sorridente. A seu lado, porém, o adolescente de 16 anos dava, sim, sinais de estar drogado. E não parava de rodar o revólver, demonstrando poder.

Para evitar que os "meninos" sejam pegos de surpresa, há pelo menos quatro olheiros em pontos estratégicos da favela, além dos tantos moradores da comunidade que os conhecem desde pequenos e os acabam protegendo. Um garoto fica bem na entrada e se mostra nervoso ao ver tipos estranhos. Outra menina fuma maconha com um grupinho de seis garotas, incluindo uma grávida.

- Para que isso, menina?, pergunta a vizinha evangélica, uma das líderes do movimento de moradia.

- Para ficar na brisa..., responde a moça.

Na própria viela, outra garota sentada na entrada de casa repassa informações. Em determinado momento, avisou: "Fica esperto que os homi tão lá embaixo". A senha disparou o nervosismo e o traficante pediu informação. "Tão em dois num golzinho prata", ela explicou.

Referia-se ao carro da reportagem, com fotógrafo e motorista dentro, confundidos com policiais à paisana. Esclarecido o mal-entendido, o movimento voltou ao normal. Ininterrupto como sempre e incentivado pelas condições precárias do bairro, que só vê a presença do Estado na repressão policial, que tem nas invasões de barracos - sem autorização judicial - uma constante. Essas e outras práticas violentas fazem com que mesmo gente que não tem nada a ver com o crime acabe preferindo apoiar os "meninos". "Quando a polícia pega eles (sic) maltrata muito, humilha, já fizeram comer pedra, comida do chão", justifica uma moradora. Sem contar que a gerente da boca sempre ajuda quando alguém da comunidade tem problema de saúde, precisa de remédio ou resolve fazer uma festinha. Mais bônus para o tráfico, que não cessa nem em dias de tensão e confronto, como os da guerra do PCC, deflagrada entre 12 e 20 de maio, que terminou com 188 mortos - 42 policiais ou agentes penitenciários, 123 suspeitos, 23 presos.

"Atrapalha, mas (o tráfico) nunca pára", resume Roberto, virando-se a mais um cliente: "Vai querer o que hoje?"