Título: Como os 2 lados puderam errar tanto?
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Fonte: O Estado de São Paulo, 22/07/2006, Internacional, p. A14

Medo e raiva impregnam Beirute com a mesma intensidade - medo de que os ataques aéreos de Israel possam ser intensificados tão logo todos os estrangeiros fujam da cidade e raiva pelo fato de não se ter conseguido impor um cessar-fogo. Em meio a todos esses sentimentos misturados, as poucas pessoas que conseguem refletir calmamente sobre os extraordinários eventos dos últimos dias continuam chocadas e receosas. Como os protagonistas puderam errar de forma tão estúpida? Onde está a estratégia de saída de Israel? O que esperava o Hezbollah quando lançou ataques nos quais capturou dois soldados israelenses e matou outros oito? Timur Goksel foi assessor da missão da ONU na fronteira libanesa. Um dia antes do ataque do Hezbollah, ele estava no balneário de Tiro com um grupo de estudantes da Universidade Americana de Beirute, onde é professor.

"As praias estavam lotadas. Parecia a Flórida", lembra. "Muitos eram libaneses xiitas ricos da diáspora no oeste da África e Estados Unidos. Eles não apóiam o Hezbollah politicamente, mas financiam os serviços de assistência social prestados pelo movimento, e eu acreditava que o Hezbollah nunca iniciaria alguma coisa pelo menos até o fim das férias. Estava errado."

Alguns analistas se perguntam se o Hezbollah acreditava que os EUA nunca permitiriam que Israel atacasse o Líbano de forma tão pesada. Depois da chamada Revolução do Cedro, no ano passado, que forçou a saída das tropas sírias, o Líbano parecia ser o país árabe favorito do governo de George W. Bush, uma vitrine para o processo democrático que Washington esperava exportar para toda a região.

Outros afirmam que o Hezbollah pode ter pensado que Israel estava muito ocupado em Gaza para arcar com uma segunda frente de batalha em sua fronteira do norte. Contudo, não há muitas evidências disso. A equipe militarmente sem experiência de Ehud Olmert e Amir Peretz já reagira violentamente ao ataque palestino no qual dois soldados israelenses foram mortos e outro foi capturado. Em vez de negociar uma troca de prisioneiros, investiu duramente contra Gaza. Por que não reagiria da mesma forma a um revés militar maior no norte? Do lado israelense, a falta de lógica também surpreende. O elemento mais estranho foi sua decisão de lançar ataques aéreos contra o Exército libanês. Como Israel pode exigir que o Exército libanês vá para a fronteira, desarme e substitua o Hezbollah e, ao mesmo tempo, atacar esses mesmos soldados que ele espera que colaborem para aplicar sua estratégia? Em uma série de ataques, pelo menos 23 militares libaneses foram mortos. Num vigoroso discurso para diplomatas estrangeiros, na quarta-feira, o primeiro-ministro libanês, Fouad Siniora, salientou que Israel não estava apenas matando civis e destruindo grandes partes da infra-estrutura do país, mas também atacara bases do Exército.

"É este o preço que temos de pagar por queremos edificar nossas instituições democráticas? É esta a mensagem enviada ao país da diversidade, liberdade e tolerância?", perguntou Siniora.

Embora tanto o Hezbollah como Israel tenham errado gravemente, Israel provavelmente errou mais. Ao que parece, seus articuladores militares não esperavam que o Hezbollah respondesse tão ferozmente às primeiras bombas israelenses depois que os dois soldados foram capturados. A chuva de foguetes do Hezbollah sobre cidades tão distantes como Haifa e o ataque bem-sucedido a um navio de guerra israelense foram uma surpresa. O Hezbollah pode ter se enfraquecido militarmente por causa dos ataques aéreos, mas ainda tem condições de lançar novos foguetes.

Uma incursão de uma unidade de elite israelense no lado libanês da fronteira levou à morte de dois soldados por guerrilheiros do Hezbollah. Amos Harel, analista do jornal israelense Haaretz, diz que, diante dessas mortes, numa operação em terra relativamente pequena, "o governo terá de pensar antes de decidir sobre uma invasão em massa no futuro".

Em cada uma das guerras anteriores, Israel combateu e venceu Exércitos convencionais de Estados árabes. E sempre demonstrou superioridade.

Mas a atual guerra assimétrica está se mostrando bem mais difícil para Israel lidar e está produzindo um maior número de mortes. Primeiro veio o recurso palestino aos atentados suicidas, que não se consegue derrotar com tanques. Agora vieram os foguetes de longo alcance do Hezbollah, que mataram mais israelenses em uma semana do que os mísseis Scud de Saddam Hussein em 1991.

É verdade que Israel não está lutando por sua existência, como aconteceu em 1967 e 1973, quando forças árabes penetraram no país. A questão, agora, é quanto sofrimento os inimigos das políticas de linha dura israelenses conseguirão infligir. O Estado está garantido, mas essa crise intensificou a sensação de insegurança de cada israelense.

E isso muda a base política de todos os cálculos estratégicos. E se foguetes de longo alcance como os do Hezbollah vierem substituir os caseiros usados pelos palestinos? Israel não deveria, finalmente, pensar seriamente num acordo negociado da questão palestina?

Os falcões da política israelense reconhecem os perigos. Uma análise feita pelo general aposentado Yaakov Amidror e por Dan Diker, do Instituto de Assuntos Contemporâneos em Jerusalém, reconhece que uma invasão israelense por terra contra o Líbano "terá implicações de longo alcance para as forças de Israel, em termos de perdas potenciais". Eles questionam "a disposição de Israel para absorver os danos na frente doméstica" e afirmam que será necessária uma capacidade de resistência muito maior do que a exigida em 1991.

No caso do Líbano, o que se questiona é se o Hezbollah emergirá da crise mais forte ou mais fraco, e se as divisões sectárias que desencadearam a última guerra civil no Líbano ressurgirão profundas a ponto de provocar um novo conflito.

Nas primeiras horas dos bombardeios israelenses, muitos políticos libaneses criticaram a milícia por tê-los provocado. Mas, como Israel continuou destruindo a infra-estrutura do país, matando mais de 300 civis e colocando meio milhão de pessoas em fuga, a raiva criou uma unidade por todo o Líbano. Em todo o Oriente Médio o Hezbollah provavelmente obteve apoio a sua luta contra Israel.

Comentaristas libaneses contrários ao Hezbollah, como Michael Young, do jornal Daily Star, temem que o líder do grupo, xeque Hassan Nasrallah, saia vitorioso. "Ele não precisa de uma vitória militar para garantir sua ressurreição política, apenas sobreviver com sua milícia intacta e Israel suficientemente ensangüentado", disse.

Contudo, mesmo que o Hezbollah se saia bem, as suspeitas e ressentimentos aumentarão, enfraquecendo mais uma vez a possibilidade de um Líbano unido. Dessa forma, tudo aponta para a necessidade de um cessar-fogo imediato. George W. Bush e Tony Blair não parecem sensibilizados com a catástrofe humana no Líbano e, numa dimensão menor, em Israel. Deveriam, pelo menos, entender o dano político que ela está provocando.

*Jonathan Steele é colunista do jornal 'The Guardian'