Título: O ápice fisiológico
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 24/06/2006, Notas e Informações, p. A3

Não é de hoje o fenômeno do "fisiologismo" na política e na administração pública brasileira, tanto que o uso desse termo, para designar as barganhas entre os detentores do Poder e os partidos - ou suas facções -, tendo em vista a troca de cargos por apoios ou votos, logo que foi utilizado, a primeira vez, tornou-se consagrado, por bem definir uma chaga notória de nosso espaço público-político. Só para lembrar, era a época do governo Sarney quando um deputado peemedebista formulou a famosa paráfrase de origem franciscana, o "é dando que se recebe", para justificar referido fenômeno. Como não poderia deixar de ser, de lá para cá a prática "fisiológica" se intensificou na proporção do despencamento dos princípios éticos na vida política e na falta de cerimônia com que os partidos têm deixado em transparência suas ambições de poder a qualquer custo. E aí, embora sem ser o único - tem bons concorrentes -, o PMDB se mostra um partido que conseguiu desenvolver aptidões especiais de conquistar nesgas de Poder, a partir de acertos de todo o tipo, improváveis e até inacreditáveis (além de indecentes).

Às vezes custa a crer que um partido que representou a resistência democrática e a força política maior que deu combate à ditadura militar tenha se tornado um vasto balcão de negócios, até se aproveitando de divergências de suas próprias alas (divergências de natureza pessoal, regional ou puramente "negocial") para colocar pés (e mãos) em canoas adversárias, situacionistas e oposicionistas, tendo em vista arrematar nacos do Poder quem quer que vença as eleições. É este o PMDB que, hoje, com suas facções ajuntadas (a governista, a oposicionista e a ambidestra) negocia com o presidente-candidato Luiz Inácio Lula da Silva e já dele obtém a promessa de ocupar seu provável segundo governo "meio a meio" - quer dizer, ficando com metade dos 33 ministérios, incluindo todos os seus escalões ("porteira fechada") afora participação em seu chamado "núcleo duro".

Sendo um partido muito bem organizado, em termos de capilaridade regional, é provável que o PMDB faça forte bancada no Congresso, além de eleger governos em alguns Estados importantes. Mas talvez venha sendo superestimada a força eleitoral peemedebista. Não é de se estranhar, a propósito, que com toda a sua estrutura e arraigada inserção, na vida político-administrativa brasileira, o PMDB não tenha conseguido, em tantos anos, formar uma liderança competitiva, capaz de concorrer à Presidência da República?

Bem é de ver que esse partido se transformou numa federação comandada por seus caciques regionais, cada vez desprezando mais qualquer laivo mínimo de coerência doutrinária ou programática, chegando, algumas vezes - como em São Paulo - ao oportunismo mais do que explícito, ao verdadeiro ápice fisiológico.

Veja-se o caso: o dirigente do PMDB paulista, ex-governador Orestes Quércia, fez de tudo para conseguir ser indicado vice, na chapa do candidato tucano José Serra - que tem grande vantagem nas pesquisas de intenção de votos e boa chance de se eleger no primeiro turno. Embora desejasse muito o apoio do PMDB e até se dispusesse, de bom grado, a ter um vice peemedebista, Serra teve que comunicar a Quércia o veto que os tucanos faziam a seu nome. O ex-governador insistiu na indicação do próprio nome, não aceitando qualquer outro - como se se tratasse de um feudo particular e inalienável. Mas os tucanos jamais poderiam concordar com essa caprichosa exigência pessoal de Quércia, sob pena de completa desmoralização, por um motivo muito simples e óbvio: o PSDB foi criado, justamente, pelos líderes do PMDB que nutriam inconciliáveis divergências éticas com Orestes Quércia. Com certeza o eleitorado tucano se colocaria fortemente contrário a essa indicação - terão pensado seus líderes. Talvez o ex-governador, hoje, pretendesse, justamente, uma espécie de atestado de idoneidade de seus ex-adversários tucanos. Mas, ao ter seu nome repudiado para integrar a chapa encabeçada por Serra, Quércia, imediatamente, anunciou sua candidatura ao governo do Estado, com o que acredita que ajudará o candidato do PT, impedindo que o tucano vença já no primeiro turno.

Mas que vantagem Quércia teria nisso? Bem, aí é o caso de conversar, de novo, com o presidente... Como havia a taxa de proteção na Chicago dos anos 30, talvez hoje se possa falar, entre nós, de uma taxa de governabilidade.