Título: E se Doha fracassar?
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Fonte: O Estado de São Paulo, 24/06/2006, Notas e Informações, p. A3

É preciso pensar em soluções alternativas para o caso de fracassarem as negociações comerciais da Rodada Doha. Alguns países tentarão multiplicar os acordos bilaterais e regionais de comércio. Os Estados Unidos já estão adiantados nesse caminho, embora sua prioridade oficial, neste momento, seja a conclusão da rodada mundial. Alguns emergentes poderão buscar, em primeiro lugar, novas negociações com os parceiros em desenvolvimento. Esta hipótese também já está em discussão e é compatível com a orientação seguida em Brasília nos últimos três anos e meio.

O projeto de Doha ainda não está enterrado, mas o tempo para sua conclusão está perigosamente escasso. Ministros de 25 a 30 países devem reunir-se em Genebra no fim do mês para tentar, mais uma vez, desbloquear a rodada. Funcionários da Organização Mundial do Comércio (OMC) e diplomatas têm trabalhado intensamente para vencer o impasse.

Há dificuldades em todas as frentes. Os emergentes cobram do mundo rico, principalmente da União Européia, maiores concessões para liberalização do comércio agrícola. São pressionados, em contrapartida, para apresentar maior abertura às importações de bens industriais. Novos esboços de acordos foram postos em circulação na OMC, na última quinta-feira, para servir de base às discussões dos ministros na reunião dos dias 28 de junho a 2 de julho.

Se nada der certo, nem mesmo um acordo mais modesto que o projetado em 2001 em Doha, será necessário buscar outros meios de facilitar o comércio. Um acordo Sul-Sul, com participação de cerca de 40 países, já está na pauta da Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento (Unctad).

Nessas negociações, economias em desenvolvimento poderão definir cortes de tarifas por meio do Sistema Global de Preferências Comerciais (SGPC), não extensivo aos países desenvolvidos. Se a Rodada Doha fracassar, será conveniente acionar esse mecanismo rapidamente, disse em Genebra o embaixador argentino na OMC, Alberto Dumond, citado pelo jornal Valor.

Para o Brasil, uma solução desse tipo seria o desdobramento normal da política adotada a partir de 2003 pelo Itamaraty, de acordo com a orientação do Palácio do Planalto. A intensificação de relações com África do Sul e Índia continua no topo da agenda diplomática brasileira. Esse objetivo caberia sem dificuldade na pauta de uma ampla negociação Sul-Sul, com participação de países da África e da Ásia. Na vizinhança, o governo brasileiro continua a trabalhar pela integração latino-americana, numa tarefa dificultada, ultimamente, pelos atritos criados pela Venezuela e pela Bolívia.

O único bloco do qual o Brasil participa plenamente, o Mercosul, está em frangalhos, e dificilmente será fortalecido com o ingresso da Venezuela comandada pelo presidente Hugo Chávez. O mais provável é que, havendo novas oportunidades e acordos bilaterais, Uruguai e Paraguai tentem deixar a união aduaneira e aproximar-se dos Estados Unidos.

Acordos comerciais com outros países em desenvolvimento podem ser muito úteis para o Brasil, um país com vocação para trabalhar com múltiplos parceiros. Nenhuma pessoa sensata pode rejeitar o estreitamento de relações com economias da África, da Ásia, da América Latina e do Caribe. Mas será um erro desastroso fazer da diplomacia Sul-Sul uma alternativa a acordos comerciais com a União Européia, os EUA e outros parceiros do mundo rico. O governo brasileiro insiste em negar que tenha uma opção desse tipo. Sua política, segundo o discurso oficial, busca a diversificação de relações, sem menosprezar o comércio com os parceiros do Primeiro Mundo.

Os fatos, no entanto, desmentem essa versão. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, num ato falho inesquecível, disse há algum tempo haver tirado da pauta, já em 2003, a Área de Livre Comércio das Américas. Confessou, dessa forma, o que sabia toda pessoa razoavelmente informada, apesar dos desmentidos oficiais.

Além do mais, o resto do mundo continuará a perseguir acordos bilaterais com os mercados mais desenvolvidos, se a Rodada Doha fracassar. Esse "resto do mundo" inclui "aliados estratégicos" do Brasil, incluída a África do Sul. Eles apenas tentam ser realistas.