Título: Nova Esquerda x Velha Esquerda
Autor: Roberto Lameirinhas
Fonte: O Estado de São Paulo, 07/06/2006, Internacional, p. A15

Há duas maneiras de interpretar os resultados das recentes eleições na América Latina. Primeiro, e mais obviamente, a suposta virada para a esquerda está perdendo fôlego rapidamente. Nas últimas semanas, o hipernacionalista Ollanta Humala, um amigo íntimo do presidente da Venezuela, Hugo Chávez, foi derrotado no Peru. O conservador Alvaro Uribe conquistou uma vitória esmagadora na Colômbia, com 62% dos votos, e Andrés Manuel López Obrador tem estado atrás nas pesquisas na eleição presidencial no México que ocorrerá em 2 de julho. Todos esses acontecimentos isolados parecem contradizer a tendência esquerdista da América Latina.

Mas existe outra forma de encarar todos esses eventos. Sim, o presidente Uribe foi reeleito, mas a grande surpresa na Colômbia foi o fim do sistema bipartidário que dominou o país durante décadas e o surgimento de um Polo Democrático de esquerda como a segunda maior força política no país.

Embora Alan García tenha vencido no Peru, ele não vem de um partido da extrema esquerda que finalmente parece ter visto a luz (como Luiz Inácio Lula da Silva no Brasil, Michelle Bachelet no Chile e Tabaré Vásquez no Uruguai). O partido dele, o APRA, fundado por Victor Raúl de la Torre em 1920, é um das organizações populistas mais antigas e mais anacrônicas da região.

Como Hugo Chávez na Venezuela, Néstor Kirchner na Argentina, Evo Morales na Bolívia e López Obrador no México, o presidente García pertence à esquerda não reciclada que brota da grande tradição populista da América Latina.

García pode ter aprendido muitas lições com sua desastrosa presidência na década de 1980, mas está muito mais perto da esquerda errada do que da certa. No México, López Obrador começou a subir nas pesquisas nos últimos dias e a mostrar suas verdadeiras intenções, prometendo as estrelas e a lua para o eleitorado mexicano.

Na realidade, os mais importantes acontecimentos recentes dentro esquerda da América Latina podem não estar tanto nos resultados das eleições mas sim nas crescentes diferenças entre modernistas e revanchistas, entre os interesses nacionais e a ideologia.

Enquanto Evo se aconchega com Chávez e Fidel Castro mais depressa do que a maioria esperava - nacionalizando o gás natural da Bolívia, convidando um grande número de médicos e consultores cubanos para irem a seu país e sinalizando uma miríade de acordos de cooperação com a Venezuela - também está alimentando crescente tensões com o Brasil e o Chile.

Ambos os países são seus vizinhos e, ao menos teoricamente, seus líderes são almas gêmeas ideológicas. Mas as diferenças entre a esquerda moderna e a arcaica e os interesses contraditórios desses três países parecem estar derrotando afinidades políticas mais superficiais.

Por exemplo, São Paulo, a potência industrial do Brasil, agora depende do gás natural boliviano para obter grande parte de sua energia. Como resultado, a Petrobrás, a empresa brasileira de energia, investiu enormes somas de dinheiro na Bolívia, em tudo, desde exploração a gasodutos. Agora, com a eleição de Evo, a principal fonte de gás natural da Petrobrás foi subitamente nacionalizada.

Os royalties domésticos sobre a produção de gás boliviano estão sendo elevados em mais de 50%, e o preço cobrado pela Bolívia a seus clientes estrangeiros pode muito bem ser dobrado. Os contratos estão sendo sendo mais desrespeitados do que cumpridos, e técnicos e advogados da PDVSA, a gigante venezuelana do petróleo, estão fazendo auditorias nas instalações da Petrobrás na Bolívia. Lula quer ser simpático com Evo, mas ele não pode ser simpático com seu vizinho expropriador e ao mesmo tempo manter satisfeitos os industriais e consumidores de São Paulo.

Estão surgindo rixas semelhantes com o Chile. A presidente Bachelet gostaria de solucionar o problema que já dura um século do acesso da Bolívia ao Oceano Pacífico, mas está descobrindo que esta tarefa é mais complicada do que esperava, pois Evo está aumentando os preços do gás e reduzindo as exportações de gás para a Argentina, o maior fornecedor estrangeiro de energia para o Chile.

A retórica de Evo tampouco ajuda, pois acusar os Estados Unidos de tentarem assassiná-lo, como ele fez na semana passada, não granjeará a simpatia das elites de um país que assinou um contrato de livre comércio com os Estados Unidos e cujo presidente logo estará visitando Washington.

No final das contas, os interesses nacionais imediatos da Bolívia podem estar sendo atendidos pela aliança estratégica de Evo com Cuba e com a Venezuela. Por outro lado, a intervenção descarada de Chávez nas eleições peruanas pode ter afastado tanto García que ele na realidade se transforma num social-democrata no estilo europeu, e López Obrador pode cumprir suas promessas relativas ao Nafta, aderir à ortodoxia macroeconômica e buscar estabelecer boas relações com os Estados Unidos.

Porém, o fosso entre as duas esquerdas na América Latina está se aprofundando resolutamente. Isso é inevitável porque essa ruptura está sendo fomentada pelo simples reconhecimento de que governos responsáveis precisam pôr os interesses nacionais à frente da nostalgia, da retórica grandiloqüente e da ideologia estridente.

*Jorge G. Castañeda, ministro das Relações Exteriores do México de 2000 a 2003, atualmente é professor emérito de Política e Estudos Latino Americanos na New York University.