Título: O leilão da Varig e o interesse público
Autor: Sérgio G. Lazzarini
Fonte: O Estado de São Paulo, 07/06/2006, Economia & Negócios, p. B2

O leilão da Varig, marcado para amanhã, tem sido tratado como a solução final "de mercado" para o problema crônico da empresa. Nada mais longe da verdade. O leilão não somente é problemático no sentido legal, como também sinaliza que a "mão salvadora" do governo está presente como nunca.

Em primeiro lugar, o que se vende nesse leilão não é a Varig em si, mas, principalmente, as concessões da Varig de operar vôos (slots). O problema é que são concessões públicas dadas pelo governo para empresas que têm condições de operar no mercado. Assim, seja qual for o preço de venda da Varig, os investidores irão pagar para obter o direito de operar os slots e os recursos resultados serão transferidos para os atuais acionistas (e, indiretamente, credores), tal como se estes tivessem o direito de propriedade sobre as concessões. Tratando-se de concessão pública, contudo, quem deveria receber o valor correspondente ao direito de operar os slots seria a sociedade. A forma que o leilão está desenhado está em desacordo com o fato de que as concessões são ativos públicos concedidos pelo governo.

Implicitamente, o que o governo faz é transferir as concessões para futuros compradores e "reembolsar" os atuais acionistas (e credores). Mas isso não faz sentido. É como se uma pessoa vivesse de favor num apartamento e depois o vendesse para o próximo morador. Se a falência da empresa fosse decretada, por exemplo, bastaria abrir leilões para os slots e o valor recebido seria transferido para os cofres públicos. A Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) poderia auxiliar, criando um marco regulatório para concessões no setor.

Segundo, as idas e vindas do processo indicam que a nova Lei de Falências já começou mal. Uma vez aprovado o plano de recuperação, a Varig deveria atuar de forma alinhada ao que foi acordado, e o sistema legal deveria avaliar se a condução da recuperação está a contento ou não. Na iminência de sinais de que o plano não está sendo ou não pode ser cumprido, a falência da empresa deveria ser decretada. O problema é que a Varig nem mesmo conseguiu honrar uma série de compromissos financeiros de curto prazo, o que sinaliza de forma inequívoca que o plano de recuperação não vingou. De forma arbitrária, entretanto, as exigências do plano têm sido amenizadas, para "garantir" que a empresa se recupere. Ou seja: de que adianta o plano de recuperação? Que sinal isso dá para futuras recuperações de empresas no contexto da nova Lei de Falências?

Terceiro, e mais uma vez, há que se fazer reparos ao envolvimento do BNDES. O financiamento de dois terços da operação de compra por meio do BNDES é desnecessário e representa uma transferência de crédito público subsidiado para investidores privados que não necessitam disso. Obviamente, o envolvimento do banco é uma forma de aumentar a atratividade de interessados no leilão. Como ocorreu nos leilões de privatização, a fórmula se repete: para garantir que a sociedade tenha a impressão de que o valor de venda foi o mais alto possível, nada melhor do que favorecer eventuais compradores por meio de subsídios públicos. O que a sociedade ganha? Ninguém do governo parece ter paciência e interesse para responder.

Quarto, alguns dos eventuais interessados pela compra da Varig são do próprio setor. A TAM, por exemplo, poderia ter a sua participação no mercado doméstico aumentada para mais de 60%, o que em condições normais levantaria sérias restrições em termos de antitruste. Mais ainda, um dos poucos argumentos sólidos para "salvar" a Varig - a possibilidade de manter um competidor a mais no mercado - vai por água abaixo se a compra for feita por um competidor. Melhor seria leiloar os slots para as empresas do setor, sinalizando limites de concentração de mercado.

Poderíamos continuar citando uma série de problemas, como a possibilidade de compra só da parte doméstica da empresa. Algo pouco lógico, já que é difícil uma empresa se sustentar só com rotas internacionais. Além disso, existem fortes incertezas se os passivos trabalhistas da Varig serão herdados ou não pelos novos controladores. Mas paremos por aqui. Ao que parece, a convicção por salvar a Varig é tão grande que argumentos sustentados em princípios econômicos e legais perderam o seu espaço no debate.

*Sérgio Lazzarini, professor da Faculdade de Economia e Administração, é coordenador do Centro de Pesquisas em Estratégia do Ibmec São Paulo. E-mail: sergiogl1@isp.edu.br