Título: Lula para presidente... da Bolívia!
Autor: Roberto Macedo
Fonte: O Estado de São Paulo, 11/05/2006, Espaço Aberto, p. A2

Nessa disputa Brasil x (Bolívia + Venezuela), é chocante a atitude do presidente Lula, sempre a argumentar pró nossos adversários, mais fazendo o papel de primeiro mandatário boliviano.

Logo de início aceitou pacificamente a nacionalização parcial das refinarias da Petrobrás na Bolívia, justificando a medida como ato de soberania daquele país. Ora, a nacionalização foi um atentado à nossa soberania, pois no contexto internacional a harmonia entre nações igualmente soberanas se faz com cada uma respeitando os direitos das demais, em particular quando sustentados por tratados e contratos assinados.

Recorde-se que no ano eleitoral de 2002 os mercados financeiros brasileiros passaram por fase de grande turbulência, assustados com promessas anteriores do candidato Lula, em particular a de "ruptura" da política econômica do governo de então, com destaque para a delicadíssima questão da dívida pública. O ambiente só sossegou com Lula abandonando sua postura de palanque, após o que prometeu e cumpriu sua determinação de honrar contratos, inclusive os ligados à dívida. Será que, agora, nosso presidente sofre de uma recaída nessa questão de respeito a contratos? Ou isso só vale para o país pelo qual demonstra, nas suas próprias palavras, tanto carinho?

Nos últimos dias, em conversas com o embaixador Rubens Ricupero, aprendi muito sobre o assunto, beneficiando-me das décadas de experiência que ele adquiriu no trato de questões bolivianas, inclusive como responsável pelos assuntos daquele país no âmbito do Itamaraty. Em particular, soube que o contrato com a Petrobrás para construção do gasoduto e fornecimento de gás integra o contexto mais amplo de um acordo de parceria com aquele país. Em matéria de gasodutos internacionais, a Bolívia começou com um para a Argentina, mas esta, depois de encontrar seu próprio gás, diminuiu a demanda, além de criar dificuldades, até mesmo atrasos de pagamento.

Outra possibilidade era via Chile, com outro gasoduto e instalações para exportar o produto por via marítima, na forma de gás natural liquefeito (GNL). Mas esse projeto não foi adiante. Já para atender ao mercado brasileiro se firmaram acordos que levaram ao gasoduto e à venda de gás. Nesse quadro, surpreende que no Brasil haja mais gente também a defender o lado boliviano, argumentando que o preço internacional do produto é bem maior que o pago pelo Brasil. Ignora-se que o negócio também deve deixar margem para remunerar o investimento no gasoduto. E, em retrospecto, deveria ter incluído outra margem, relativamente ao risco boliviano que agora se materializa.

E mais: o interesse brasileiro era trazer o gás de forma competitiva com o principal produto que aqui substituiria na esfera industrial, o óleo combustível, que não deve ser confundido com o diesel. Nessa linha, o custo do produto boliviano para o Brasil se assenta contratualmente numa complicada fórmula, baseada nos preços internacionais de três tipos desse óleo que substitui. Qualquer parte do contrato pode pedir um reajuste extraordinário do preço, mediante notificação à outra informando sobre seu interesse numa renegociação, e, se esta não chegar a bom termo, cabe o recurso à arbitragem. Mas, em lugar desse caminho, termos do contrato e de regras internacionais de soberania foram atropelados com a nacionalização parcial e a ocupação militar das instalações da Petrobrás.

Quem opta pela força e pelo desrespeito a regras desse tipo demonstra ter perdido a razão. Com isso a arma do desabastecimento está apontada para nossos motores, indústrias e cozinhas, tencionando nossas cabeças. Como poderemos "negociar" se isso aconteceu e o Brasil foi posto sob pressão? Dada a agressiva atitude boliviana, é um processo em que já entramos perdendo, e de forma inaceitável. E como acreditar que um novo acordo não será, mais à frente, novamente desrespeitado?

Pelo noticiário se depreende também que nosso presidente vê um eventual aumento do preço do gás boliviano como um mal menor. De olho na eleição, assegura que, se isso ocorrer, não haverá repasse aos consumidores no Brasil. Ora, com isso Lula estaria causando prejuízos à Petrobrás, ignorando que se trata de uma companhia que tem outros acionistas e ações negociadas em bolsas, até no exterior. Ignoro se isso tipificaria crime de responsabilidade presidencial, de que fala a Constituição, mas é possível que surjam contestações judiciais dessa decisão, se de fato ocorrer.

De qualquer forma, em face do que já houve, espera-se que o governo federal ao menos tenha um resquício de bom senso e abandone a idéia desse outro gasoduto, bem mais caro, que tornaria o Brasil dependente do abastecimento de mais um país hoje sob comando nada confiável, a Venezuela e seu presidente Hugo Chávez. Até agora o projeto não foi defendido na sua viabilidade econômico-financeira e ambiental, nem no que diz respeito ao risco político como o que sobreveio no caso da Bolívia. Tudo se assenta apenas na vontade política de uma trinca de mandatários, que inclui o argentino, num mau arranjo em que o nosso país arcará com os maiores riscos e provavelmente, também, com os maiores custos.

O que está claro nessa questão do gás boliviano é que o interesse nacional é mal defendido, a ponto de Lula afirmar: "Estamos nos colocando à disposição para saber de que forma poderemos trabalhar juntos para elaborar projetos que possam contribuir para o desenvolvimento da Bolívia e melhorar a qualidade de vida de sua gente."

É uma frase muito adequada ao discurso de um candidato a presidente... da Bolívia!

Roberto Macedo, economista (USP), com doutorado pela Universidade Harvard (EUA), pesquisador da Fipe-USP e professor associado à Faap, foi secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda