Título: O mundo está na fase pós-pós-guerra fria
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Fonte: O Estado de São Paulo, 11/05/2006, Internacional, p. A14

Tem sido revelador estar na Europa Oriental, no rastro da advertência de Dick Cheney à Rússia contra o uso de suas exportações de petróleo e gás como "instrumentos de intimidação e chantagem". O Financial Times observou que parte da mídia russa apresentou os comentários de Cheney como um eco do discurso de Winston Churchill na cidade de Fulton, no Estado americano do Missouri, em 1946, advertindo que uma cortina de ferro descia sobre a Europa.

Na verdade, não acho que estejamos voltando à guerra fria. Acho que estamos avançando. Estamos deixando o mundo que habitávamos - o mundo pós-guerra fria - e entrando no mundo pós-pós-guerra fria. Os americanos não vão gostar do mundo pós-pós-guerra fria, a menos que levem a energia a sério.

O mundo da guerra fria era um mundo bipolar, estabilizado por um equilíbrio nuclear entre duas superpotências. O mundo pós-guerra fria era, para os americanos, uma belle époque unipolar, na qual uma "Hiperpotência americana", como os franceses a apelidaram, parecia dominar o cenário global, econômica e estrategicamente - um cenário caracterizado por uma constante expansão de mercados livres e governos eleitos democraticamente.

O mundo pós-pós-guerra fria é um mundo multipolar, onde o poder dos EUA é contido em todas as direções. A China se ergue como potência, graças ao trabalho duro e à poupança elevada. Além da China, contudo, outras potências surgem, graças apenas à disparada dos preços do petróleo - potências que estavam em declínio no pós-guerra fria.

São elas: a Rússia de Vladimir Putin, que se opõe aos Estados Unidos em várias frentes; a Venezuela de Hugo Chávez, que é a Cuba de Fidel anabolizada no mundo pós-pós-guerra fria, liderando uma nova onda de nacionalizações e antiamericanismo na América Latina; e, é claro, o Irã, que usa a bonança do petróleo para se tornar uma potência nuclear.

Sim, o petróleo a US$ 70 o barril está transformando este mundo pós-pós-guerra fria num mundo multipolar.

"É o 'eixo do petróleo'", diz Michael Mandelbaum, autor do livro The Case for Goliath (A razão para Golias). "Ele é mais duradouro e importante que o terrorismo - e não temos nenhuma política para ele." Não é só que os outros estão se tornando mais agressivos. É que os EUA se tornaram menos assustadores. Com os americanos sangrando no Iraque, George W. Bush altamente impopular na Europa e o sistema bipartidário dos EUA tão deturpado que nem consegue responder a uma crise como a da energia, o país não é mais temido como antes.

"Em 2002 e 2003, todos falavam da 'Hiperpotência americana'", afirmou Eric Frey, editor do diário austríaco Der Standard. "Ninguém fala hoje do poder esmagador americano, e isso chega a intensificar o antiamericanismo. É que antes havia ressentimento e respeito e agora há ressentimento e desprezo." Ao mesmo tempo, o ressurgimento da Rússia atrai a atenção da Europa Oriental. A Hungria obtém dos russos mais da metade de seu gás natural.

Alguns húngaros começam a relembrar uma velha piada da guerra fria.

Depois que a seleção de futebol da Hungria derrotou a soviética, o Kremlin enviou um breve telegrama aos líderes húngaros: "Parabéns pela vitória. Ponto. Petróleo ponto. Gás ponto." "Se você me perguntasse há cinco anos, eu diria que a história havia acabado - que não havia mais o urso russo", declarou Pal Reti, editor da revista econômica húngara HVG. "Eles tinham tantos problemas que não perderiam tempo para se preocupar com os dos outros. Mas constatei que eles têm outra série de prioridades e agora têm força para tratar delas." Sim, a Rússia não possui mais um grande exército ou qualquer ideologia, mais ainda tem instintos selvagens e conta com o dinheiro do petróleo para dar vazão a esses instintos.

No mundo pós-guerra fria, a integração e a reforma econômica da Europa pareciam irreversíveis e destinadas a transformar o continente numa potência democrática mundial. Mas, no mundo pós-pós-guerra fria, a Europa não consegue se unir em torno de nada - nem mesmo de uma política energética - e por isso é intimidada pela Rússia.

"Estou muito pessimista quanto à Europa Ocidental - e isso é novidade", afirmou Lajos Bokros, professor de economia da Universidade Centro-Européia, em Budapeste. Muitos europeus ocidentais "não são competitivos o suficiente" e "não querem implementar as reformas". A menos que a Europa opte pelo modelo irlandês de crescimento elevado, em oposição aos modelos francês, italiano e alemão, acrescentou Bokros, "a região européia inteira vai decair mais e se tornar insignificante e irrelevante neste jogo global".

Por todos esses motivos, não sinto falta da guerra fria, mas sinto falta do pós-guerra fria. Porque este mundo pós-pós-guerra fria parece infinitamente mais confuso, difícil de manejar e cheio de gente malvada que enriquece - não construindo sociedades decentes, mas simplesmente perfurando poços de petróleo.

*Thomas Friedman escreveu, de Budapeste, para o 'The New York Times'