Título: Vida selvagem no Planalto
Autor: Rolf Kuntz
Fonte: O Estado de São Paulo, 11/05/2006, Economia & Negócios, p. B2

Quantos malandros são necessários para desmoralizar uma Câmara dos Deputados? Sessenta? Cento e setenta? Esses números lembram a corrida armamentista, quando Estados Unidos e União Soviética, as superpotências da guerra fria, acumularam megatons suficientes para aniquilar a humanidade uma porção de vezes. "Qualquer pessoa acha um exagero", disse o corregedor da Câmara, Ciro Nogueira, referindo-se à hipótese de 170 envolvidos no caso das ambulâncias superfaturadas. Falta descobrir o número máximo compatível com a preservação da boa imagem da casa.

O corregedor e o presidente da Câmara, Aldo Rebelo, prometeram agir com rapidez para liquidar o assunto e promover a expulsão dos corruptos. Outros parlamentares manifestaram espanto e indignação diante da bandalheira, mas quase nada se falou sobre uma questão fundamental: por que diabo o Orçamento federal deve cobrir despesas de prefeituras, a menos que se trate de programas definidos por ministérios?

A pulverização de verbas orçamentárias, por meio de emendas individuais, cria condições excelentes para safadezas variadas. Os congressistas propõem despesas, negociam sua aprovação e aí termina sua responsabilidade. Cabe ao Tesouro a liberação de verbas. A decisão pode ser sujeita a uma avaliação de prioridade ou à mera conveniência política do governo. Mas dificilmente alguém fiscaliza a aplicação efetiva do recurso. Quem vai verificar se houve concorrência e, em caso positivo, se a concorrência foi limpa?

Já se respondeu, na Câmara, que a instituição não tem meios para isso. No final, ninguém se responsabiliza por essa tarefa e assim se abre espaço para a bandalheira. Quem sabe quantos outros assaltos, iguais ao caso das ambulâncias, talvez piores, terão ocorrido nos últimos cinco ou dez anos?

Mas isso não é tudo, nem é o problema principal, em termos de administração pública. Se nenhum desvio ocorrer, ainda assim o dinheiro do contribuinte será desperdiçado. Não há como justificar, racionalmente, a prática tradicional das emendas parlamentares.

Estados e municípios têm receitas próprias e recebem transferências federais obrigatórias: 47% da receita do Imposto de Renda e do Imposto sobre Produtos Industrializados. E há também as aplicações decorrentes de programas federais.

Do ponto de vista gerencial, tem sentido, por exemplo, o Ministério da Saúde aplicar dinheiro em programas de equipamento de prefeituras pobres. Se os padrões administrativos forem bons, esses programas serão baseados em estudos e o dinheiro será usado com eficiência.

Mas a chamada parte livre do Orçamento Geral da União é partilhada segundo critérios muito diferentes. As verbas são estraçalhadas de acordo com interesses clientelísticos . Trata-se o dinheiro do contribuinte com a mesma sem-cerimônia com que os predadores atacam a carcaça de um animal abatido num campo africano. Reportagens do Discovery Channel sobre a vida selvagem são boas descrições alegóricas do processo orçamentário. Isso não tem nada que ver com democracia representativa. Tem que ver, isso sim, com uma concepção defeituosa do papel do parlamentar.

"Minha missão é levar as emendas para a Paraíba", disse o senador Ney Suassuna, citado pelo jornal Valor. "No meu primeiro mandato, paguei com o salário de senador a reforma de 82 ambulâncias." A iniciativa do pagamento pode ser elogiável, mas, para isso, ele não precisaria de um mandato legislativo. Além disso, a função de senador não é "levar emendas" para seu Estado. A representação parlamentar é algo muito mais amplo - ou deveria ser.

A concepção do senador Suassuna está longe de ser uma extravagância, em seu ambiente de trabalho. Há poucos dias, numa entrevista a uma rádio, um deputado federal afirmou que seu salário não basta para suas necessidades, que incluem o pagamento de passagens para pessoas que o procuram. Mas os eleitores e contribuintes não devem ser obrigados a financiar os favores pessoais que um deputado queira fazer.

Quantos parlamentares, em Brasília, têm essa concepção do papel de um legislador? Não será surpresa se a contagem for muito além dos 170 possivelmente envolvidos no caso das ambulâncias. Não é preciso envolver-se em golpes para malbaratar dinheiro público. Basta cuidar do orçamento como se cuida no Brasil.

*Rolf Kuntz é jornalista