Título: Governo de Evo, entre Che e Chávez
Autor: Paulo Moreira Leite
Fonte: O Estado de São Paulo, 11/05/2006, Economia & Negócios, p. B4

Quem anda pelo centro de La Paz chega a ficar espantado com a presença de Fidel Castro e Hugo Chávez. Fidel não aparece todo dia, mas as imagens de Che Guevara, o símbolo duradouro e trágico da Revolução Cubana, estão em toda parte. No gabinete da liderança do MAS, partido do governo, na Câmara de Deputados, é possível contar uma coleção de 65 imagens do Che. Atrás da escrivaninha de Antonio Peredo, o bem-humorado líder do MAS no Senado, não há um retrato do presidente Evo Morales, cuja popularidade arrastou uma maioria de políticos anônimos da esquerda boliviana para o centro do poder após uma longa temperada de penúria. Mas uma imagem de Guevara domina o ambiente.

Chávez é na verdade a grande presença política em La Paz depois do presidente. Os dois já se encontraram sete vezes desde o início do ano e têm um novo encontro marcado para a semana que vem, quando Chávez virá a La Paz assinar um convênio para industrialização de gás e acompanhar o lançamento de dois bancos venezuelanos na Bolívia. Todos os dias, os espectadores podem sintonizar a TV para assistir ao noticiário preparado nos estúdios da Cadeia Sul, montada em Caracas, que costuma contar os acontecimentos mundiais do ponto de vista do governo da Venezuela, numa espécie de TV Pravda tropical - e exibe trechos selecionados da Conversa com o Presidente, de Hugo Chávez. A Cadeia Sul é uma idéia de Chávez, que banca a maior parte de seus custos. Sócio minoritário, Evo Morales entra com 6%.

Três meses depois da posse no Palácio Quemado, Evo Morales demonstra que, como os colegas mais experimentados, também possui seu apetite pelo poder. Eleito para um mandato de cinco anos, já começa a elaborar, nos bastidores políticos de La Paz, uma emenda constitucional para a reeleição, o que lhe permitiria planejar a permanência em palácio até 2016 - hipótese que ajuda a explicar o empenho na formação de uma maioria de 70% dos votos na Assembléia Constituinte.

Num levantamento junto aos serviços de imigração, descobriu-se que entre dezembro e março um total de 675 venezuelanos ingressaram no país. Desses, 85 têm patente militar e algumas dezenas declararam ter especializações técnicas. Num comentário ácido, o cientista político Marcelo Varnoux Garay afirma que "a forma pela qual Hugo Chávez toma liberdades para analisar nossos problemas causa constrangimento, pois dá a impressão de que os bolivianos são incapazes de exercer soberania sem subordinações". O Palácio Quemado explica que são pessoas "vinculadas aos projetos de educação e saúde que estamos tocando em conjunto". A oposição garante que técnicos venezuelanos participaram da elaboração do decreto que nacionalizou o gás e o petróleo - coisa que o governo desmente. "Essa insinuação chega a ser um insulto", afirma Cesar Navarro, líder do MAS na Câmara de Deputados.

Não é por acaso que três meses depois do início do governo, quando o comportamento espaçoso de Chávez já eram parte inevitável da paisagem, o vice-presidente Alvaro García Linera, um ex-guerrilheiro a quem não se pode negar um olhar arguto sobre as realidades duras da política, lançou a tese de que Evo Morales teria criado sua própria escola de pensamento político, o "evismo, modelo ideológico para a América Latina", num esforço para tentar assegurar alguma luz própria ao chefe de Estado boliviano.

Chávez garante sua presença na Bolívia com muito dinheiro. Há convênios variados, mas o maior é de U$ 30 milhões e envolve um programa de alfabetização, que já é um dos pontos prioritários da propaganda oficial. "Fazem críticas a esses acordos mas não dizem que são muito úteis para o país", diz Cesar Navarro. "A Bolívia não poderia sair sozinha de sua imensa crise, fruto de anos e anos de governos interessados apenas em saquear suas riquezas."

Para impedir que Evo Morales fique só, o governo de Cuba também tomou diversas providências. Despachou 387 funcionários de Havana para Caracas. Mantém bolsas de estudo para 5 mil estudantes bolivianos, que são selecionados por critérios que combinam desempenho acadêmico e fidelidade política, construindo laços ideológicos preciosos no futuro. Cuba também mantém clínicas de saúde em vários pontos do país, onde é possível realizar, de graça, cirurgias relativamente simples - como de catarata - que a rede pública só realizava após longas esperas.

Cuba enviou ao país quase mil médicos, a maioria dedicada a programas de saúde da família nas cidades do interior, embora a Bolívia tenha um prestígio médico razoável, a tal ponto que sua faculdade em Santa Cruz de La Sierra chega a ser procurada por estudantes brasileiros que não conseguem passar no vestibular no Rio ou em São Paulo.

Com milhares de desempregados espalhados pelo país, as entidades médicas protestam, pois o governo alega que não tem verba para contratá-los. No início, o Ministério da Saúde dizia que os médicos cubanos trabalhavam de graça no país, com salários pagos por Havana. Mais tarde, descobriu-se que pegam no batente em troca de cama, comida e uma pequena ajuda de custo das prefeituras locais. Para observadores políticos, ao receber tantos doutores cubanos a Bolívia ajuda Fidel a livrar-se de profissionais qualificados que um regime quebrado já não consegue pagar - mas não é só isso.

"Esse projeto incomoda por duas razões", afirma a deputada Sandra Yánez, ligada ao Podemos, de oposição. "A primeira é que o governo dá preferência aos estrangeiros quando tem mão-de-obra nacional disponível. A segunda é que nossa soberania está sendo invadida, pois é evidente que nem todos vieram aqui para cuidar da saúde do povo boliviano."

PARCEIRO GENEROSO

Falido e quebrado, o regime de Fidel Castro encontrou em Evo Morales um parceiro generoso na medida em que os cofres bolivianos permitem. Em La Paz, garantem que partiu de Evo Morales a idéia de formular um tratado comercial com a presença de Cuba, Venezuela e Bolívia, iniciativa que leva o empresário Gabriel Dabbdoud, de Santa Cruz, província que é um tradicional reduto de idéias conservadores e prosperidade econômica nas duas últimas décadas, a presentear os visitantes com um documento onde se destrincha o "comércio" entre La Paz e Havana. "Foram 5 mil dólares em 2004", diz ele. "É assim que queremos desenvolver o país e criar empregos?"

Se a presença de Chávez se explica pelos dólares do presente, a de Fidel e dos cubanos remete ao passado. Embora o presidente e boa parte dos políticos do MAS sejam cidadãos de origem humilde, saídos de comunidades indígenas e bairros populares, a elite de seu governo veio da luta armada. Eles assumiram boa parte dos ministérios e, quando isso não ocorre, ocupam os postos-chave que têm o poder real nestes ministérios.

A maioria desses ex-guerrilheiros gosta de se comparar com o movimento zapatista, do sul do México, que transformou o subcomandante Marcos em celebridade periódica da esquerda latino-americana. Eles também possuem organizações paralelas, que formulam políticas revolucionárias e projetam planos de longo prazo.

O deputado Cesar Navarro acha que as alianças com Fidel e Chávez são úteis para a Bolívia e critica o governo brasileiro de Luiz Inácio Lula da Silva por não ter feito a mesma coisa depois da posse. "O Brasil poderia ter sido o líder inconteste dos latino-americanos, mas Lula preferiu ignorar essa realidade", diz Navarro. "Hoje, a população não entende sua solidariedade com os bolivianos em razão do gás." Do ponto de vista da democracia, a aproximação de Evo Morales com Fidel e Chávez contém um elemento estranho. O regime de Fidel é uma ditadura decrépita e o petrorregime de Chávez alimenta organizações sociais construídas a partir do Estado, na velha receita do populismo sul-americano.

Já o governo boliviano foi construído de baixo para cima, a partir de um movimento social vigoroso e autônomo, que promoveu rebeliões em vários pontos do país até instalar Evo Morales em Palácio. Três meses depois, Evo não enfrenta oposição e descontentamento entre os adversários, mas entre os aliados, como milhares de estudantes que fizeram ontem uma passeata no centro de La Paz para gritar "el pueblo unido jamás será vencido" e cobrar promessas não cumpridas de campanha. Cenas desse tipo não ocorrem em Caracas e jamais seriam vistas em Havana.