Título: Dá para virar
Autor: Mauro Chaves
Fonte: O Estado de São Paulo, 10/06/2006, Espaço Aberto, p. A2
Por mais fingido que venha a ser o entusiasmo dos convencionais tucanos que, amanhã, deverão escolher Alckmin candidato à Presidência da República; por mais que o governador mineiro faça questão de disfarçar só um pouco sua óbvia falta de interesse em relação à candidatura presidencial do correligionário - que, se julgasse viável, já teria tentado detoná-la de vez, visto não suportar nenhuma concorrência ao trono maior a ele destinado, em 2010, por direito atávico; por mais que FHC (como me disse na semana passada) esteja bem desanimado com a falta de "gut" (entranha, força visceral) de seu partido, que nem sequer tem sabido reagir, via Justiça Eleitoral, à escandalosa utilização da máquina presidencial de Lula em favor de sua reeleição; por mais que Serra tenha descoberto uma súbita felicidade em usufruir as favas contadas, concorrendo numa campanha fácil (como há muito não conhecia) ao comando da segunda administração da República (atrás apenas da federal, e olhe lá), por isso até receando levar respingos dos índices de rejeição alckimista, daí preferindo, no íntimo, a sábia distância regulamentar; por mais que os tucanos tenham a plena consciência de que escolheram o candidato errado, que trocaram o mais competente pelo mais insistente, o mais preparado pelo mais inebriado, o mais viável pelo mais improvável; por mais que o experiente PFL encare sua coligação com os tucanos como uma espécie de fatalidade crônica, não curável, mas administrável, e, a partir desse conformismo, se dedique a extrair o máximo resultado da meia-boca eleitoral que oferece aos tucanos; por mais que o candidato Alckmin simbolize a figura do substituto, algo comparável - neste clima futebolístico - ao jogador Amarildo, que na Copa de 62 substituiu Pelé - e todos se torturavam para absorver com otimismo a inexorável substituição; por mais que seu concorrente, o presidente reeleitorável, esbanje carisma, ponha toda a sua estrutura de poder a serviço eleitoral, sem o mais remoto escrúpulo; por mais que se mostre baixíssimo (em torno de apenas 7%) a porcentagem da população que se preocupa, realmente, com questões relacionadas à ética na política, visto que ela não está nem aí com mensalão, caixa 2, valerioduto, Waldomiro Diniz, Delúbio Soares, Silvio Pereira, Duda Mendonça, José Genoino, Luiz Gushiken, Paulo Okamotto, Bruno Maranhão, contas fantasmas, dólares na cueca, prefeitos assassinados, partidos comprados, mensaleiros poupados, fundos de pensão afanados, bens públicos roubados, recursos dos contribuintes desperdiçados e tudo mais - ainda dá para virar.
Dá para virar porque a população brasileira pode sentir-se enganada e com um acúmulo de decepções que a levem a preferir a mediocridade à mentira, a falta de imaginação ao excesso de cobiça, a rotina pouco criativa ao frenesi da locupletação. De alguma forma o eleitorado poderá acabar percebendo - e não lhe faltarão lembranças históricas para o demonstrar - que os carismáticos não são, necessariamente, melhores governantes do que os de baixo perfil. Às vezes, muito pelo contrário. Assim como as personalidades ofuscantes podem conduzir a um imenso engodo coletivo, a uma ilusão de progresso e melhoria que resulta em verdadeiro desastre, as personalidades ofuscadas podem-se revelar corretas na condução da administração pública, fazendo compensar o brilho faltante pelo esforço do acerto, persistentemente buscado. Dá para virar porque a sociedade brasileira talvez já tenha desenvolvido, até em nível inconsciente - mas que pode aflorar na hora decisiva das urnas -, uma saturação, uma ojeriza visceral em relação à falta de valores morais, à enganação sistemática, ao disfarce público, ao fingimento geral. É claro que numa situação dessas não dá para ter a pretensão de escolher o inexistente ótimo - pois apenas cabe a intenção de optar pelo menos ruim.
Dá para virar porque anteontem o presidente-candidato propiciou uma das cenas mais constrangedoras a que já foi submetida a melhor seleção do mundo. Numa videoconferência, "entrevistou", fez sugestões, pedidos e deu "conselhos" aos jogadores e ao treinador Parreira, que revelaram uma faceta ainda desconhecida de Luiz Inácio Lula da Silva: apesar de se confessar "fanático" por futebol (tentando aí um faturamento político, à imitação do general Médici), ele demonstrou que não entende absolutamente nada de futebol. Sugeriu a Parreira, por exemplo, que convencesse Ronaldinho Gaúcho a não ficar sério no momento de cobrar uma falta ("parecendo que quer matar o outro"), mas sim soltar seu alegre e descontraído sorriso, que todos adoram. Ao que Parreira teve de lhe dar a resposta - e lição - adequada: "Isso, não, presidente. Se o Ronaldinho fica sério durante a cobrança da falta, é porque aí ele tem que ficar focado, concentrado. Sorrisos e brincadeiras ele pode fazer nos treinos e em outras ocasiões." Em outro momento, Lula insistiu em perguntar a Parreira com qual seleção ele preferia jogar na final - fazendo, inclusive, uma tola menção à possibilidade de vir a enfrentar seleções dirigidas por brasileiros, a japonesa de Zico e a portuguesa de Felipão. É claro que a Parreira só cabia dar ao presidente mais uma lição, até para preservar um mínimo de diplomacia e ética esportiva: "Não podemos escolher nossos adversários, presidente." Ao final, Lula disse (e repetiu) que pretendia assistir ao primeiro jogo da Copa com os "campeões de 58 que estão vivos". Seria o caso de lhe indagar: só com os vivos, presidente? Por que a discriminação?
Será, mesmo, que não dá para virar?
Mauro Chaves é jornalista, advogado, escritor, administrador de empresas e produtor cultural. E-mail: mauro.chaves@attgobl.net