Título: Contra anões e sanguessugas
Autor: Gilmar Machado
Fonte: O Estado de São Paulo, 10/06/2006, Espaço Aberto, p. A2

Acontecimentos recentes envolvendo a Comissão Mista de Orçamento (CMO) levaram a sociedade e a imprensa a se perguntarem se estaríamos diante de um caso semelhante ao protagonizado pelos chamados "anões do orçamento". É necessário, antes de tudo, ressaltar que, caso se comprovem desvios de conduta de parlamentares envolvendo emendas individuais ao orçamento da União, isso não significa uma ressurreição do "esquema" revelado em 1993. Naquela época, a CPI do Orçamento identificou um reduzido grupo de deputados, responsáveis pela elaboração do orçamento da União, que se utilizaram do conjunto das emendas parlamentares para enriquecimento ilícito.

Embora existam semelhanças, as realidades são diferentes. Naquele infeliz episódio de nossa história parlamentar, manipulava-se o próprio processo de exame e aprovação das emendas individuais no âmbito da comissão. As informações relativas ao processo legislativo orçamentário não eram disponibilizadas para os agentes interessados e muito menos para o público em geral. Desse modo não era difícil alterar a proposta depois de aprovada, e parlamentares e servidores corruptos recebiam propinas para fazê-lo.

Diferentemente daquele momento, as notícias que hoje circulam na imprensa indicam possíveis conluios entre parlamentares, funcionários de órgãos do Poder Executivo (especialmente nos municípios) encarregados da execução das ações objeto das emendas e, finalmente, empresas fornecedoras de bens na área da saúde, para fraudar licitações. Com a abertura do processo orçamentário a qualquer cidadão por meio na internet, contudo, já não seria tão fácil fazer alterações na proposta orçamentária sem que elas fossem percebidas pelos plenários da CMO e do Congresso Nacional. O aumento do controle social sobre o processo orçamentário limita consideravelmente a atuação de agentes corruptos. Portanto, os casos são parecidos, mas não iguais.

Como foi dito, no caso de 1993 se falsificava o processo legislativo orçamentário no âmbito do próprio Congresso. Isso ocorria em função de falhas de controle, pela ausência de isonomia no tratamento entre os próprios parlamentares e na existência de regras pouco claras no processo orçamentário.

Um exemplo é que naquela época não havia limitação do número de emendas individuais nem do valor a elas atribuído pelo relator da lei orçamentária. Um parlamentar poderia apresentar quantas emendas quisesse e o relator poderia contemplá-las com o volume de recursos que lhe parecesse adequado. Em decorrência, alguns parlamentares apresentavam centenas de emendas individuais, que eram contempladas com valores expressivos de recursos, enquanto outros, mesmo que tentassem participar ativamente do processo orçamentário, apresentando emendas, por não fazerem parte do conluio de corrupção que então vigorava, não conseguiam vê-las aprovadas.

As distorções identificadas pela CPI foram corrigidas com a limitação do poder dos parlamentares de indicar emendas para obras de grande porte, que passaram a ser próprias de emendas coletivas. Além disso, a partir de 1993 houve uma forte horizontalização do processo orçamentário com o objetivo de viabilizar a maior participação de parlamentares. Foram relatorias setoriais, comitês de avaliação de receita, de emendas, de obras irregulares e outras ações. Finalmente, promoveu-se um aumento gradativo da transparência do processo orçamentário, que, por decisão da CMO, a partir deste mês pode ser acompanhado em todos os seus detalhes por toda a sociedade, via internet.

As denúncias atuais, no entanto, nos falam de articulações entre membros do Legislativo federal, do Executivo da União, de Executivos municipais e empresas fornecedoras. O alvo seriam os cofres públicos, que estariam sendo sangrados por meio de licitações fraudadas. Ou seja, neste caso o problema está em todo o processo, especialmente na última etapa da execução financeira, quando o município paga um bem ou serviço com os recursos federais recebidos pelo orçamento da União. A irregularidade clama por urgentes mudanças, que a CMO já começou a estudar. Muitas idéias estão sendo discutidas com o objetivo de sanar o problema e aperfeiçoar o processo de confecção e execução do orçamento da União.

Uma das possibilidades é a transformação de todas as prefeituras do País em unidades gestoras, no âmbito dos Sistemas Integrados de Acompanhamento Financeiro (Siafi) do governo federal. Desta forma, os recursos federais não seriam repassados aos municípios e ficariam retidos no Tesouro Nacional até serem transferidos diretamente aos fornecedores das prefeituras. Essa opção poderia reduzir e simplificar as etapas da transferência do dinheiro público entre níveis da Federação e criar condições para um efetivo controle dos recursos federais aplicados nos municípios, tendo em vista que os gestores devem, naturalmente, incluir no Siafi todas as informações de realização (execução) de pagamentos.

Atualmente, a União e os municípios assinam convênios que automaticamente fazem com que se abra uma conta especial para onde os recursos financeiros são transferidos e os pagamentos, realizados. A transformação dos municípios em unidades gestoras no âmbito do Siafi economiza etapas, aumenta o controle do caminho do dinheiro público federal e minimiza a possibilidade de desvios.

A idéia - que poderia ser introduzida no processo orçamentário por dispositivo na Lei de Diretrizes Orçamentárias, que será votada na próxima semana pelo Congresso Nacional - não traz perda para a autonomia dos municípios porque esses recursos, afinal, são da União.

Essas providências não excluem outras ainda sob exame, mas permitem desde já fechar brechas que os fatos recentes parecem ter revelado e, assim, dar continuidade ao constante aprimoramento que o processo orçamentário demanda.

Gilmar Machado, deputado federal (PT-MG), é presidente da Comissão de Planos, Orçamentos Públicos e Fiscalização