Título: Por um acordo na OMC
Autor: Paulo Skaf
Fonte: O Estado de São Paulo, 10/06/2006, Economia & Negócios, p. B2

O momento político da Rodada Doha exige muita responsabilidade dos negociadores. Quando se analisa o passado e a dívida que o sistema multilateral de comércio tem com a agroindústria brasileira, decorrente do protecionismo dos países desenvolvidos, entende-se que ao Brasil não interessa fechar um acordo este mês sem resultados reais para nossa economia.

Para fazer jus ao compromisso com o desenvolvimento assumido pelos membros da Organização Mundial do Comércio (OMC) no lançamento da Rodada Doha, em 2001, o acordo final precisa nivelar o terreno entre o setor agrícola e o manufatureiro. A agricultura deve ser liberalizada a ponto de compensar o esforço de abertura já realizado pela indústria desde 1947, ano da assinatura do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT), do qual o Brasil foi sócio-fundador. Somos credores desta "dívida do GATT", que, convertida em termos financeiros, proporcionaria enorme conforto econômico ao nosso país e aos outros afetados pelas distorções no comércio agrícola. Para nós, o agronegócio representa 30% do produto interno bruto (PIB), 40% das exportações e 90% do superávit comercial.

Os negociadores das nações desenvolvidas têm consciência de seu modelo colonialista de comércio. Europa e EUA detêm, juntos, 50% do PIB mundial e gastam US$ 100 bilhões ao ano em subsídios agrícolas para manter 4% de sua população no campo. Isso permite extravagâncias econômicas e sociais. Por exemplo: 2 bilhões de pessoas no mundo vivem com menos de US$ 1 por dia, mas as vacas francesas gozam a vida com US$ 2.

O Brasil é o maior produtor de café, mas a Alemanha é a maior exportadora, sem ter um pé plantado, em razão das altas tarifas de importação sobre o produto torrado e moído. Nosso país é obrigado a pagar 44% de imposto para vender etanol nos EUA e 51% na União Européia. O exportador de frango brasileiro tem ônus de 505% para entrar no Canadá e 893% na Noruega. O suco de laranja sofre com as repetidas medidas "antidumping" dos EUA, cujo único objetivo é preservar a produção da Flórida.

Há dois meses, recebemos na Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), pela segunda vez em menos de um ano, o diretor-geral da OMC, Pascal Lamy. Ficou evidente que a barganha político-econômica capaz de produzir acordo na Rodada Doha passa pela solução de um "nó de três pontas", cujas extremidades são formadas pelos EUA, com a melhora das propostas em subsídios agrícolas; União Européia, com maior corte nas tarifas da agricultura; e os países do G-20, por meio de redução mais ampla dos impostos de importação dos bens industriais.

Na visão da Fiesp, a oferta da União Européia, que propõe corte médio de 38% nas tarifas do bloco e de 65% nos subsídios agrícolas norte-americanos, proporciona pouco acesso aos nossos produtos de exportação. Mesmo que razoável quanto aos subsídios, é incapaz de desmontar a muralha das tarifas. Assim, não atende aos compromissos de desenvolvimento de Doha. A proposta do G-20, de redução de 50% das tarifas da União Européia e de 80% dos subsídios dos EUA, significa equilíbrio entre ambição e viabilidade.

A proposta dos EUA prevê: queda de 74% das tarifas agrícolas da União Européia e de 60% nos subsídios norte-americanos. É um avanço em relação à proposta européia, mas não em comparação à Farm Bill (lei de 2002, que concede enorme subsídio aos agricultores norte-americanos). Assim, desatar o "nó de três pontas", na visão da Fiesp, depende da combinação das propostas do G-20, em subsídios, e dos EUA, em tarifas.

O sucesso da próxima Rodada pode ser a oportunidade de resgatar a dívida da qual o Brasil é credor há mais de 50 anos e que os países ricos se recusam a pagar, e há um componente estratégico: a possibilidade de nos colocarmos entre as nações com maior inserção internacional na indústria agrícola, da qual herdamos a vocação pela natureza, e na manufatureira, na qual construímos nossa vocação pelo trabalho.

Há duas décadas vimos abrindo os mercados. É hora de os EUA e a União Européia fazerem concessões. Que todos saibam que nosso país pode mover-se de sua posição atual em favor de uma fórmula "suíça 30" para bens industriais (corte de 50% nas tarifas), caso se convença de tal necessidade. Buscamos conciliar ganhos e concessões, mas preservando a meta do desenvolvimento. O momento é de decisão - e a roda da história aponta para Washington e Bruxelas.