Título: Uma perspectiva feminina
Autor: Andréa Barros
Fonte: O Estado de São Paulo, 25/06/2006, Aliás, p. J3

Piloto de avião, bióloga formada em Stanford, oceanógrafa e filósofa, casada com um matemático e mãe de uma segundo-tenente da Força Aérea Americana, a bispa Katharine Jefferts Schori foi eleita para presidir a Igreja Episcopal americana, provavelmente o mais alto posto alcançado por uma mulher na história da Igreja Anglicana. Não é pouca coisa, em uma comunidade com 77 milhões de seguidores no mundo todo. E, como sempre acontece quando a questão envolve mulheres e Igreja, houve vários protestos. Fernando Altemeyer, mestre em teologia pela Universidade de Louvain, Bélgica, tem uma opinião otimista sobre o assunto. Ele aposta que, dentro de 50 anos, todas as igrejas deverão fazer mudanças em favor da presença da mulher. A seguir, os principais trechos:

A ELEIÇÃO DE KATHARINE

"É o corolário de um processo iniciado em 1976, quando começou o debate sobre a ordenação de mulheres na Igreja Episcopal dos Estados Unidos, a Igreja Anglicana. Ela é a primeira mulher nomeada para esse conselho de bispos e, como disse seu antecessor, a eleição é uma confirmação do testemunho que as mulheres exercem em todas as ordens sagradas da Igreja. Achei divertidíssimo ver que uma das grandes eleitoras de Katharine foi a mulher de outro bispo, candidato ao mesmo cargo. Isso é interessante, mostra a mulher querendo, como no voto feminino nos Estados Unidos e mesmo no Brasil, colaborar com a 'categoria'. O anglicanismo hoje é uma grande comunhão de igrejas autônomas e consensos diferenciados. Algumas já ordenam mulheres, nos Estados Unidos, na Nova Zelândia, no Canadá, mas há outras que têm restrições. É de notar que nessa eleição houve vozes críticas mesmo nos Estados Unidos. Muitas pessoas disseram 'a tradição seria que fosse escolhido o mais velho' ou 'a tradição seria seguirmos com os homens'. Houve grupos que argumentaram que a eleição de uma mulher seria 'ruim para o diálogo com outras igrejas onde a mulher não tem destaque'."

SÓ O CARGO NÃO RESOLVE

"Não se resolvem as questões de gênero simplesmente colocando a mulher num posto de destaque. Pode-se ter muitas pastoras, mas ainda assim haver discriminação, salário diferenciado, paróquias que não sejam do mesmo nível, tensões machistas na própria Igreja. As igrejas também têm questões internas de como lidar com essa nova realidade. Ter mulheres não muda imediatamente as relações culturais cotidianas. Uma pesquisa feita em 2004 sobre a mulher brasileira nos espaços público e privado mostrou que 19% concordavam com a premissa de que o homem é superior à mulher. Não adianta fazer uma mudança de cima abaixo se não houver um aumento na auto-estima. Claro, vai ser emblemático dizer: 'nossa igreja tem uma mulher ordenando', mas, se as relações culturais sexistas não se alterarem no cotidiano, isso não é suficiente."

O PAPEL DAS MULHERES

"Temos que fazer uma distinção: a Igreja Católica não permite mulheres na sua organização clerical, nem no diaconato, no presbiterato, no episcopado e, por conseqüência no papado. Mas há mulheres representantes do papa nos conselhos internacionais, em órgãos e secretarias do Vaticano, em cargos importantes. Há dezenas de espaços na Igreja Católica que são comandados por mulheres. Eu gosto de fazer essa distinção, não para fugir do tema de que a mulher não está na Igreja Católica, mas porque não há apenas cargos clericais. Quanto aos cargos clericais, é preciso fazer um passeio pela história. No surgimento do Cristianismo, como um grupo dissidente do judaísmo, com Jesus de Nazaré, Paulo, Pedro, Tiago, não havia nenhuma distinção formal entre homens e mulheres. Não havia distinção nem entre chefes de igreja e igreja. A Igreja primitiva era animada - e, portanto, não comandada - por apóstolos. Em alguns casos, Paulo diz, por apóstolas. A Bíblia fala de dezenas de mulheres que são coordenadoras das comunidades e que tinham expressão importante. No século IV a Igreja se organizou, se burocratizou, se institucionalizou. Criou-se o clero e ele ficou reservado ao masculino. Isso aconteceu por razões culturais: o mundo marcado pela determinação de que o líder (em árabe, o xeque) é homem porque a mulher não tem um papel ativo na condução das tribos. A expressão desse patriarcalismo penetrou também na Igreja. Mas é bom lembrar que isso não esteve presente na mentalidade de Jesus, nem em seus relacionamentos."

AS RAZÕES DA EXCLUSÃO

"O papa João Paulo II chegou a determinar que a ordenação de mulheres não deveria nem sequer ser debatida. Há leitores teológicos que dizem: se Jesus escolheu 12 homens para seus seguidores por que vamos escolher uma 13ª mulher? Até quando morreu Judas Iscariotes a substituição por sorteio caiu em Matias. Poderia ter caído em Maria, Mãe de Jesus. Só que a gente tem que ver o contexto do lugar e ler com clareza o Evangelho para ver se, ao escolher os doze a Igreja primitiva estava mesmo negando a possibilidade de haver uma mulher no futuro. Até porque em certos momentos da História da Igreja nos séculos IX, XII, XIII,XV, as maiores expressões simbólicas não eram de homens - ao contrário, essas eram até catastróficas, com papas que fizeram roubos e crimes, como os Bórgias. Quem de fato era a expressão do Evangelho, de compromisso, do engajamento, da pureza de Jesus, eram mulheres: Tereza D'Ávila, Catarina de Sena, Joana D'Arc, Efigênia. A Igreja às vezes vive mais da santidade das mulheres do que dos homens."

MUDANÇAS À VISTA

"Jesus não propôs nenhuma estrutura como eterna, definitiva. Definitivo é o seguimento do Evangelho, um ato de amor, isso sim. E, é claro, algumas coisas são fundamentais: os mandamentos, a fé em Deus. Mas Jesus não falou: 'até o fim do mundo vai ter bispo'. Houve uma época em que não havia bispos como há hoje. Até o século VI, VII não havia cardeais. Os cardeais não elegiam o papa, hoje elegem. Claro, não basta a mulher dizer 'eu quero', será preciso também uma decisão de governo. Ela virá? Virá, inclusive com este papa. Bento XVI já deu um prenúncio de que veio para fazer algo diferente, diferente até dele como Ratzinger, diferente dele como guardião da fé. Vai fazer algo como o papa que quer marcar a história, como grande intelectual que é, sensível. E ele apontou algo na sua primeira carta encíclica, dizendo que o eros e a sexualidade erótica, o ato de amor entre homem e mulher, devem ser valorizados na Igreja tanto quanto o amor de Deus. Isso nunca foi dito dessa forma. Não sou profeta, mas na carta ao dizer isso, ao apresentar-se sempre de maneira muito gentil com todas as mulheres do mundo, ele parece apontar que algo vai ser feito. A Igreja precisará se alterar para isso. Ela passou pelo menos 1 800 anos definindo que o clero só teria homens, depois que seriam solteiros. Nos próximos 50 anos as igrejas todas deverão fazer mudanças, competentes, inteligentes, lúcidas, em favor da presença da mulher. Isso vai exigir que elas revejam sua identidade teológica, que reflitam sobre o papel da mulher na instituição. Talvez a Igreja devesse discutir que modelo deve ter num mundo urbanizado, pós-moderno, onde as relações de igualdade definiram novos papéis. A revolução feminista trouxe uma crise masculina grave. Temos que questionar o novo lugar da mulher na Igreja, mas também o novo lugar do homem e o novo lugar de ambos na Igreja. Não será fácil, como qualquer mudança em uma instituição bimilenar, presente em todos os países do mundo, que tem 400 mil padres, 4,5 mil bispos, 800 mil religiosas, 150 cardeais, 4 mil funcionários na Cúria Romana."

TEOLOGIA FEMININA

"Nos séculos III, IV, as maiores teólogas eram mulheres. Mas, se pegarmos qualquer livro do século XX, só aparecem homens. Será que não existiu nenhuma pensadora de envergadura no século XX? E Teresinha de Lisieux, não é uma pensadora importante? O papa acabou de reconhecê-la como doutora da Igreja. Só há 33 doutores na Igreja. E doutor na Igreja quer dizer o bambambã: é Agostinho, Tomás de Aquino, Afonso de Ligore. Lá estão Catarina de Sena, Teresa de Ávila e Terezinha de Lisieux, três mulheres. Hoje temos grandes teólogas, como a americana Elizabeth Fiorenza Schusler, as brasileiras Ivone Gebara, Ana Maria Tepedino, Maria Clara Bingemer, Tereza Cavalcante, só na lista de algumas que conheço pessoalmente. Maria Clara é das mais competentes teólogas da PUC do Rio. A reflexão que Ivone Gebara faz sobre a Santíssima Trindade é inovadora para a teologia do mundo. Nós estamos num momento muito fecundo, embora restrito. Talvez elas apareçam menos, porque também é verdade que o número de teólogas é muito menor."

UMA REVISÃO

"A mãe de Jesus tem um lugar especial na Igreja primitiva, tão relevante que merece a mais alta veneração. Alguns dizem: se Maria tem um lugar de tal destaque não participava das escolhas de Jesus? O primeiro cristão a ser batizado na Europa por Paulo foi uma mulher. Adolf Von Harnack (1851-1930) - um dos mais competentes estudiosos da Bíblia, teólogo que escreveu o Tratado de História dos Dogmas e mudou o pensamento protestante da época - comprovou que a carta aos Hebreus foi escrita por Priscila e não por Paulo. Jesus nunca foi misógino. Será que o jeito que lemos Jesus não é o jeito masculino de ler? Ele teve um grupo de seguidoras, a Maria Madalena, a Miriam, a própria mãe dele. Assim como Paulo o teve. Paulo é acusado de machista porque disse: 'assim como na vida têm que ter quem mande, uns tem que ser submetidos aos outros, que a cabeça da mulher seja o marido. Se o chefe de todos é Cristo, o chefe da mulher é o homem'. Ele está dizendo isso dentro da lógica judaica, numa cidade onde a perversão sexual era enorme, Corinto, em que a prostituição era total. Paulo abole com a circuncisão e diz que para entrar na Igreja só será preciso mergulhar na água, e isso homem e mulher podem fazer. Em Gálatas está escrito que diante de Cristo não há mais escravos nem livres, nem homem nem mulher, porque todos são um neste Cristo, Jesus. É uma fala quentíssima. O Cristianismo originário não é sexista, não é machista. E Jesus foi muito humano. Há uma cena lindíssima do Evangelho quando levam uma parente de Jesus para ser apedrejada, porque pega em adultério. A mulher o questiona e ele lança aquele desafio para todos: que atire a primeira pedra quem não tiver um pecado. E então Jesus diz: 'Vá em paz, não peques mais'. É um ponto nevrálgico: a mulher muda Jesus."

MOVIMENTAÇÃO GERAL

Nos últimos 40 anos há movimentos em várias igrejas para a inclusão das mulheres. No metodismo brasileiro, por exemplo, já há episcopisas. Em alguns lugares dos Estados Unidos mulheres católicas celebram missa, se autodotaram do poder de presidir a eucaristia. Isso tem valor? Tem valor simbolicamente, como um ato feito por cristãos, só que é válido e ilícito, simultaneamente. Todo gesto de fé tem validade, Santo Tomás dizia que até o demônio se fizer o bem já não é mais demônio. Só que não está em comunhão com o que a Igreja definiu, o que gera uma irregularidade, uma ilicitude. Algumas dizem que fazem isso para forçar, só que isso às vezes tem uma função pedagógica negativa porque força tanto que rompe. O grupo é considerado sectário, estranho ao corpo, gera repulsa, 'ah, essas católicas rebeldes'. Esse movimento já existe lá há 30 anos e nunca reverberou aqui. No Brasil a mulher tem uma participação forte nas comunidades cristãs, na catequese, na liturgia, nas congregações. Talvez não seja o espaço do reconhecimento institucional mais pleno, mas ela tem lugar, é reconhecida, sabe que realiza coisas fundamentais. E há ainda as religiões em que a mulher tem postura central, como, por exemplo, a umbanda, o candomblé. A mãe-de-santo é a figura central, a ialorixá, a senhora sacerdotisa. A Coen é a maior monja de zen budismo do Brasil."

FOCOS DE RESISTÊNCIA

"Há grupos no Vaticano preocupados com a presença maciça das mulheres, tanto que um grupo alemão superconservador pediu ao papa um documento que impedisse as mulheres de servir o altar, que ficassem restritas ao átrio. Mas isso não é o pensamento total dos bispos. Em geral no Brasil as mulheres têm acesso. Eu diria que metade dos postos das organizações de grandes serviços é ocupada por mulheres na arquidiocese de São Paulo."

NOVA AGENDA

"A própria mulher é a agenda desse século XXI. E essa é a grande questão: como a Igreja vai assumir a agenda da mulher? Ela vai trazer questões da sua vida pessoal, profissional, sexual, afetiva e tudo isso vai irromper dentro da Igreja. Uma vez quando ainda era sacerdote uma mulher veio se confessar, dizendo que vivia um grave problema de relacionamento com seu marido. Ela estava entrando na menopausa e ele não a compreendia. Eu não sabia o que era menopausa e fui procurar uma ginecologista no posto de saúde, queria entender o que é menopausa. Ela propôs falar sobre menopausa na missa. Eu disse: a senhora vai falar no horário solene da liturgia, porque metade das mulheres da minha igreja está na menopausa. O que as mulheres sentem, vivem, sofrem são agenda teológica. Tem que se tornar agenda de igreja."