Título: A espoliação dos brasileiros
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 25/06/2006, Notas e Informações, p. A3

O presidente Evo Morales é bom aluno de mau professor. Aprendeu rapidamente com seu mentor, o presidente venezuelano Hugo Chávez, que a invenção de um inimigo estrangeiro é a receita certa para amealhar o apoio das camadas mais humildes - e mais numerosas - da população. E Evo Morales precisa desesperadamente de votos nas eleições do dia 2 de julho, primeiro, para obter maioria esmagadora na Assembléia Constituinte a ser eleita e, segundo, para que o plebiscito sobre a autonomia de Santa Cruz, Beni e Pando tenha resultados satisfatórios para sua política centralizadora.

O coronel Hugo Chávez angaria apoio popular dizendo-se ameaçado de morte pelo ¿império¿ e conclamando os venezuelanos a se unirem para repelir uma iminente invasão norte-americana. Montado nos petrodólares, compra armas de que o país não necessita, para dar uma verossimilhança à ameaça externa. O presidente Evo Morales administra um Estado falido e não tem como militarizar a Bolívia. Mas nem por isso deixa de fazer o que seu mestre manda. Nesta semana, por exemplo, arengando num comício, denunciou que ¿soldados americanos, disfarçados de estudantes e turistas, estão entrando no país¿. Para completar o enredo da comédia, meteu no script o Brasil, essa potência imperialista que tem explorado os bolivianos e suas riquezas naturais: ¿Os pandinos, o movimento indígena, camponês, colonizador, estão pedindo aos gritos que o Exército apareça. Vamos mandar o Exército para defender as terras do Leste boliviano dos brasileiros.¿

O líder cocalero tem uma certa propensão a utilizar o Exército. Quando decretou a nacionalização dos recursos naturais, mandou tropas ocuparem as refinarias da Petrobrás - até hoje não se sabe por que ou para quê. Agora, a ameaça volta-se contra os fazendeiros brasileiros, produtores de soja, que se instalaram desde a década de 1990 na faixa de fronteira dos Departamentos de Pando e de Santa Cruz.

É gente pacífica, que só se instalou na Bolívia porque foi atraída por terra fértil e barata e pelos incentivos dados pelo governo boliviano para os fazendeiros que se dispusessem a desbravar a zona de fronteira. Eles não invadiram território alheio nem entraram clandestinamente na Bolívia. E, desde que lá estão, como mostrou o economista Marcos Sawaya Jank em artigo no Estado de quarta-feira, transformaram Santa Cruz no maior centro agropecuário da Bolívia, responsável por 70% da produção do país. Há cerca de 30 mil agricultores brasileiros na Bolívia. Eles são os principais produtores de soja do país, o segundo produto boliviano de exportação, atrás apenas do gás natural vendido para o Brasil.

A receita anual que os agricultores brasileiros geram representa 6,5% do PIB do país. A Petrobrás, antes do decreto de nacionalização dos hidrocarbonetos, produzia cerca de 15% do PIB. São esses geradores de riquezas que Evo Morales - inspirado por uma ideologia que mistura nacionalismo, populismo e um indigenismo saudoso das míticas glórias das civilizações pré-colombianas e insuflado por Hugo Chávez, que vê na Bolívia uma presa fácil para o expansionismo bolivariano - quer expulsar do país.

Pelo decreto de nacionalização das riquezas minerais, o Estado boliviano tornou-se dono de 51% das empresas estrangeiras que lá operavam, inclusive e principalmente a Petrobrás. No dia 1º de julho - não por acaso, véspera das eleições para a Constituinte -, a Petrobrás entregará à empresa estatal boliviana as operações de distribuição de combustíveis, junto com as outras seis empresas que vendem gasolina e diesel por atacado para os postos de serviço. As questões do preço do gás fornecido ao Brasil e das indenizações devidas pela estatização das refinarias e dos projetos de pesquisa de petróleo e gás serão, cedo ou tarde, resolvidas por acordo ou arbitragem. A Petrobrás, afinal, tem como se defender.

O mesmo não se pode dizer dos agricultores brasileiros. Eles estão sujeitos à ¿revolução agrária¿ anunciada por Evo Morales - nada mais, nada menos, que a ¿regularização¿ dos títulos de terras. Os brasileiros que tiverem propriedades na faixa de 50 quilômetros da fronteira serão expulsos. Os outros passarão pelo crivo da ¿função social¿ da terra, verificada por um governo hostil aos estrangeiros que produzem e que quer distribuir as propriedades aos sem-terra locais. Os agricultores brasileiros perderão o trabalho de uma vida sob o olhar complacente do governo brasileiro?