Título: Palavra de índio
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 25/06/2006, Notas e Informações, p. A3

Talvez não seja mero folclore hollywoodiano a crença de que os povos indígenas da América - ao contrário de muitos de seus enganadores colonizadores europeus - sempre valorizaram o compromisso da palavra dita, do acordo feito. Afinal de contas, os condutores do magnífico império incaico não mantiveram com firmeza os acordos de paz, até serem atraiçoados pelos invasores brancos? E aquele dirigente indígena brasileiro, que chegou ao Congresso, não tinha a mania de andar com um gravador na mão, para provar que o cara-pálida lhe tinha dito isso e não aquilo? Mas é claro que, como em tudo o mais, a cultura branca deve ter contaminado o respeito do índio à própria palavra e, em conseqüência, aos acordos celebrados, de forma a tornar sempre flexíveis os limites fixados entre partes - como, por exemplo, os relativos a demarcação de terras indígenas.

Em 1998 as comunidades tupiniquins e tupis fizeram acordo de demarcação, com representantes da Aracruz Celulose, relativamente a áreas de propriedade da empresa situadas no Espírito Santo. Na ocasião, a reserva indígena, anteriormente fixada em 5 mil hectares, tivera substancial ampliação para 7,5 mil hectares. Recentemente, um parecer da Funai, elaborado depois que grupos de índios invadiram outras áreas daquela companhia, na região, propôs a ampliação da reserva de 7,5 para nada menos do que 18,5 mil hectares. A indagação preliminar que cabe é esta: será que o acordo firmado em 1998 fora tão falho, a ponto de reduzir - em pelo menos 11 mil hectares - aquilo que, por direito constitucional, pertencia a comunidades indígenas? E como teria sido possível a Funai permitir que se cometesse tamanha falha técnica fundiária?

Para tentar evitar a perda de 11 mil hectares de reserva florestal, maciço que abastece sua fábrica, com capacidade de produzir 2 milhões de toneladas de celulose por ano, a Aracruz apresentou contestação ao parecer da Funai, em 380 páginas e 16 volumes de documentos, cujos argumentos principais se assentam na seguinte base: por levantamento histórico e documental, realizado nos últimos dois anos, comprovado teria ficado que não houve presença dos tupiniquins e guaranis na região - ou seja, as duas tribos que reivindicam a ampliação da reserva jamais habitaram, anteriormente, aquela área. E a contestação apresenta prova documental da aquisição de titularidade daquelas áreas, por parte da empresa, a partir do final da década de 1960.

A razão dessa argumentação é que, se provado ficar que os índios daquela etnia não habitaram a área, os títulos de propriedade da Aracruz não podem ser contestados. Pela Constituição, o direito originário indígena - comprovado por sua presença histórica em determinada área - se sobrepõe a qualquer outro título de terra. Aí a União poderá assumir a área, para fins de demarcação de terra. Nesta como em outras questões envolvendo terras indígenas, que muitas vezes, infelizmente, descambam para a inútil violência, é preciso decidir com isenção, realismo e ausência de comprometimentos ideológicos. No entanto algumas ONGs, do País ou estrangeiras, e determinadas ¿missões religiosas¿, em lugar de contribuírem para a conciliação e a paz, têm mais é ajudado a acirrar conflitos entre tribos indígenas e seus ¿concorrentes¿ na exploração (freqüentemente predatória) dos recursos naturais.

Também já se disse, a propósito da ampliação desmesurada das reservas indígenas, em proporção ao real contingente demográfico dessas populações, que nossos índios são os maiores latifundiários do Brasil, detendo extensões de terra jamais imaginadas por qualquer outro grupo social que habite nosso território. É verdade que, se tomada a circunstância histórica ao pé da letra, as populações indígenas são as proprietárias originais de todas as terras do País, pois as detinham desde os tempos anteriores à distribuição das sesmarias pelos colonizadores portugueses. Mas se prevalecesse esse critério, em um mundo de conquistadores e conquistados - que é o da história dos povos do planeta -, alguma nação, hoje, teria direito legítimo sobre qualquer porção de seu território?