Título: Lula quer acabar com as agências
Autor: Suely Caldas
Fonte: O Estado de São Paulo, 25/06/2006, Economia & Negócios, p. B2

Baseado em parecer da Advocacia Geral da União (AGU), que transgride de forma grosseira a legislação em vigor, o presidente Lula usou sua caneta na semana passada para tentar acabar de vez com a autonomia das agências reguladoras, subordinando suas decisões aos ministérios. ¿Este parecer é um acinte ao Estado de Direito, é retroceder ao regime autárquico da década de 50 e uma tentativa autoritária e ultrapassada de centralizar poder¿, adverte o professor de Direito Regulatório da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Alfredo Ruy Barbosa, bisneto do famoso jurista baiano. A autonomia das agências é precondição para reduzir o risco regulatório (portanto, o preço de tarifas pagas pela população) e para tranqüilizar investidores interessados em aplicar seu dinheiro em serviços públicos e infra-estrutura, no Brasil. No governo Lula, esses investimentos encolheram drasticamente e uma das razões mais fortes é justamente o temor de interferências políticas nas decisões das agências, que Lula busca agora oficializar, ao subordiná-las a ele e a seus ministros.

O parecer da AGU foi provocado pelo Ministério dos Transportes, a quem a empresa Tecon (que administra o porto de Salvador) interpôs recurso administrativo contra uma decisão da Agência de Transportes Aquaviários (Antaq). Enquanto o ministério interpretou caber tal recurso, a Antaq entendeu ser apropriado apenas o recurso judicial. O conflito - inédito, porque nunca antes houve recurso ao ministério - foi parar na AGU, que acabou acatando, no caso específico, a decisão da Antaq. Porém, de forma premeditada e ardilosa, aproveitou o conflito para tentar golpear a autonomia. ¿O pressuposto necessário da premissa é a existência incondicional da supervisão ministerial como traço essencial do regime presidencialista vigente¿, define o texto assinado pelo consultor-geral da AGU, Manoel Lauro Volkmer de Castilho, ao encaminhar o parecer para o presidente Lula arbitrar. Castilho negou-se a falar com a articulista.

Submeter o caso à arbitragem do presidente da República é indício claríssimo da intenção de criar não um precedente isolado, mas a própria jurisprudência da questão, dando poder aos ministérios para alterar ou até revogar decisões das agências. ¿Por que buscar a assinatura do presidente para uma questão simples, sem relevância? A única explicação é o propósito de criar jurisprudência para orientar casos futuros¿, afirma o advogado Paulo Valois Pires, que atua na área de direito regulatório e tem clientes em conflito de interesses com agências. ¿Com esse parecer na mão, não vacilarei em entrar com recurso administrativo no Ministério das Minas e Energia para revogar decisão da Agência Nacional do Petróleo que desagrade a meu cliente¿, exemplifica Pires.

No mundo inteiro as agências se caracterizam por: 1) Independência de ação; 2) análise técnica, e não política; 3) decisões sempre colegiadas. Essas três regrinhas têm o sentido de proteger a população e o serviço público a ela prestado contra interferências de natureza político-eleitoral de governantes, sempre conflitantes com o interesse da população. No Brasil, a legislação que criou as agências não deixa dúvidas em garantir a autonomia e define que elas são vinculadas, e não subordinadas aos ministérios, como quer o consultor-geral da AGU (e o leitor sabe muito bem o quanto ministros são veículos de interesses político-eleitoral em nosso país). É neste sentido que o parecer da AGU ignora e transgride a legislação.

Ao concluir sua argumentação, Castilho resume: ¿Em suma, não há suficiente autonomia para as agências que lhe possa permitir ladear, mesmo dentro da lei, as políticas e orientações da administração superior, visto que a autonomia de que dispõem serve justamente para a precípua atenção aos objetivos públicos.¿ O professor Alfredo Ruy Barbosa discorda: ¿Este parecer é ridículo, um retrocesso, com o único objetivo de liquidar com a autonomia das agências, e deve ser derrubado o quanto antes. Vou reunir colegas advogados e defensores da lei para derrubá-lo¿, promete.

Em escalada crescente para esvaziar as agências - que vai da nomeação de políticos, e não técnicos, para as diretorias, estrangulamento orçamentário, falta de dinheiro, insuficiência de quórum com inúmeras vagas na diretoria -, o governo Lula parte agora para mais uma ofensiva que imagina mortal: quer transformar as agências em meros departamentos dos ministérios. Mas ainda há no País quem defenda a Constituição, as leis e o Estado de Direito. Com a palavra o Supremo Tribunal Federal.

*Suely Caldas é economista. E-mail: sucaldas@estado.com.br