Título: Escala e o desafio da China
Autor: Stephen Roach
Fonte: O Estado de São Paulo, 25/06/2006, Economia & Negócios, p. B11

Pela segunda vez em dois anos, a economia chinesa está superaquecida. Mesmo assim, mais uma vez, as autoridades chinesas estão tomando uma atitude desenvolvimentista no tratamento do problema. Embora essa estratégia tenha funcionado razoavelmente bem no passado, agora talvez não seja mais o caso. Quanto maior se torna a China e quanto mais a reforma avança, mais difícil será usar ajustes de política de crescimento para guiar a economia. A China precisa dar uma nova abordagem à política de estabilização, antes que seja tarde demais.

Os efeitos escalonados representam um desafio cada vez mais grave para a estratégia de política macro da China. Nem sempre foi assim, especialmente quando a China era uma economia pequena e, na sua maior parte, não desenvolvida. Mas esse período já se foi há muito tempo.

Embora a China tenha respondido por apenas 5% do PIB mundial em 2005 (em taxas de câmbio do mercado baseado em dólar) - seus setores superaquecidos agora têm um peso muito maior na sua própria economia assim como na economia global mais ampla. Esse é particularmente o caso do efervescente setor de investimentos fixos. Em 2006, os investimentos em ativos fixos tendem a ultrapassar US$ 1,3 trilhão, ou seja, mais de 50% do total do PIB chinês.

Isso é assombroso por qualquer padrão. Mesmos nos seu auge, as parcelas de investimentos no Japão e na Coréia do Sul nunca subiram muito acima da faixa de 40%. Em contraposição, nos Estados Unidos, a maior economia do planeta, os investimentos fixos tendem a ficarem em torno de US$ 2,3 trilhões , ou seja, 17% do PIB em 2006. Noutras palavras, embora o PIB da China seja de somente cerca de 18% do PIB dos EUA, os gastos em investimento fixo chineses estão chegando a quase 60% daqueles dos EUA.

Em outras palavras, o delta de investimentos da China - o crescimento do seu gasto com investimentos - torna pequena qualquer coisa que o mundo tenha visto nos últimos anos. De 2000 a 2005, os investimentos fixos chineses subiram de cerca de US$ 400 bilhões a US$ 1,1 trilhão - um aumento de US$ 680 bilhões que foi quase 70% maior do que o delta de investimentos dos EUA de cerca de US$ 400 bilhões realizados no decorrer do mesmo período.

Comparações semelhantes são evidentes no setor de exportação da China - a outra parte superaquecida da sua economia. Em 2005, o total em exportações de produtos manufaturados chineses atingiu US$ 762 bilhões - o que corresponde a 84% do nível de exportações de mercadorias nos EUA, o maior motor comercial do mundo. Como resultado, as exportações de mercadorias subiram para 34% do PIB chinês em 2005 - quase cinco vezes a participação de 7% nos EUA. Aqui, mais uma vez, o delta de crescimento é nada menos que assombroso. No período de 2000 a 2005, as exportações de mercadorias chinesas triplicaram, enquanto as dos EUA aumentaram somente cerca de 15%. Esta enorme disparidade põe o delta de exportações da China no último período de cinco anos (US$ 512,9 bilhões) a um ritmo de 4,2 vezes maior que o dos Estados Unidos (US$ 121,3 bilhões).

As repercussões do surto de crescimento da China impulsionado pelos investimentos e as exportações têm alcance global. Não é apenas uma história de exportação e investimento e suas implicações no emprego e salários reais no mundo desenvolvido. É também uma história de impactos cada vez mais poderosos sobre materiais industriais e outros mercados de commodities. Impulsionada por atividades com intenso uso de commodities, como urbanização, infra-estrutura e industrialização, a China tem surgido como uma força prevalecente no formato da demanda global para a maioria de materiais estratégicos.

Como observei recentemente, só em 2005, a China respondeu por 50% do crescimento global total do consumo de alumínio. No que diz respeito a outros materiais industriais, as comparações batem todos os recordes - 84% de minério de ferro, 108% de produtos de aço, 115% de cimento, 120% de zinco, 307% de cobre e bem mais do que esta última porcentagem de níquel.

Tenho argumentado que, com as pressões protecionistas aumentando e o crescimento dos riscos de excesso de capacidade, a China agora está se aproximando do fim do seu modelo de industrialização ¿com uso intensivo de commodities¿ e está prestes a embarcar num grande processo de reequilíbrio na direção do crescimento impulsionado pelo consumidor que vai diminuir o teor de commodities do seu PIB. A explosão de crescimento estimulada pelos investimentos e pelas exportações no início de 2006 torna tal transição ainda mais urgente. Tudo isso propõe um problema cada vez mais perturbador aos mentores da política chinesa. Numa economia normal baseada no mercado, as ferramentas fiscais e monetárias são os meios principais pelos quais as autoridades moderam os excessos do ciclo comercial.

Porém a China está longe de ser uma economia normal. Apesar de 25 anos de notáveis reformas, o país ainda continua sendo uma economia muito misturada - uma mistura entre empreendimentos de propriedade estatal e de propriedade privada. Embora a balança da propriedade continue a pender drasticamente para longe do Estado, as estatísticas mais recentes indicam as empresas de propriedade estatal com cerca de 35% do PIB chinês. Mais ainda, sem dúvida que esta parcela subestima o grau de controle do Estado na recém-privatizado - ¿corporatizado¿ no linguajar chinês - segmento da economia.

Mesmo depois das ofertas públicas, o Estado ainda mantém grandes participações acionárias de propriedade majoritária na maioria das chamadas empresas de propriedade privada, listadas publicamente. Além disso, é indubitável o impacto limitado que as forças internas do mercado têm tido na impulsão dos dois setores superaquecidos da China. Por exemplo, em 2004, as unidades de propriedade do Estado ou de propriedade coletiva ainda respondiam por 50% do total de investimentos em ativos fixos na China. Também, quase 60% do total de exportações chinesas são geradas por ¿empresas de investimento externo¿ - subsidiárias chinesas de multinacionais estrangeiras e parceiras de joint ventures que dependem de recursos chineses como uma parte essencial de suas soluções de eficiência global.

A economia chinesa mista é também apoiada por um setor financeiro relativamente subdesenvolvido. A despeito das reformas recentes, a China está ainda muito longe de ter um sistema bancário e mercados de capitais que funcionem plenamente. Dois de seus ¿quatro grandes¿ bancos são agora empresas com ações na Bolsa, mas a transição para práticas de empréstimo com base comercial está apenas na sua infância.

A China também não dispõe de um mercado bem desenvolvido de títulos corporativos que possibilite às empresas privadas emergentes garantir recursos dos mercados de capitais. Isso significa que o grosso da alocação de crédito na China continua a apoiar-se nos ombros de um sistema bancário ainda muito fragmentado - sendo as decisões tomadas mais a nível provinciano do que pelos quartéis-generais de Pequim.

Além disso, as agências bancárias locais ainda estão estreitamente alinhadas com políticos do Partido Comunista local, cuja principal prioridade é a estabilidade social e o crescimento dos empregos impulsionado por obras. Como tal, a política monetária no nível do governo central - especialmente ajustes recentes de taxas de empréstimos e nas proporções das reservas em nível nacional - pouco fazem para dar uma forma ao gasto em investimentos do país.

Em vez disso, as autoridades chinesas optaram por controles ¿administrativos¿ para ajustar os fluxos de investimentos numa base por setor e geográfica. Como conseqüência, a contrapartida moderna do departamento central de planejamento da China - a Comissão Nacional de Reserva e Desenvolvimento - tem mais a dizer sobre a alocação de capital do que o mercado ou as autoridades tributárias ou monetárias.

Um grande risco para a China é o fato de estar presa às armadilhas das contradições inerentes a uma economia mista. Os excessos de um ciclo de liquidez global e doméstica acentuam o problema. Não só os bancos chineses têm sido particularmente agressivos em pressionar por novos empréstimos recentemente - os empréstimos em yuan nos primeiros cinco meses de 2006 foi mais de 80% superior ao do mesmo período do ano anterior como também a rigorosamente administrada flutuação da moeda da China liga seu suprimento de dinheiro a um explosivo aumento das reservas em divisas estrangeiras.

No ano passado, o acúmulo chinês de reserva em moeda estrangeira chegou a US$ 200 bilhões, e este ano o estoque de tais valores em reservas externas facilmente excederá US$ 1 trilhão, ultrapassando o Japão como o maior depósito de reservas externas do mundo. O problema da China é que seu regime cambial ainda requer uma reciclagem maciça dessas reservas em ativos baseados em dólar. Não tendo um mercado doméstico de dívidas bem desenvolvido, fica difícil para a China ¿esterilizar¿ todas essas compras de dólares, o que significa que o excesso de liquidez se espalha pela economia doméstica.

Não por coincidência, uma ampla M2 (volume da oferta de moeda em circulação, excluídos os montantes mantidos em caixa pelas autoridades monetárias e pelos bancos comerciais, mais a moeda escritural - depósitos à vista do público nos bancos) estava crescendo em maio de 2006 a um ritmo de 19,1% em relação ao ano anterior, ou seja, 3 pontos porcentuais acima do alvo do banco central que era de 16%.

Desnecessário dizer que isto, em última análise, é bastante problemático para o controle da inflação tanto no mercado de mercadorias como no de ativos. Na minha opinião, a bolha de investimentos da China, especialmente os excessos nos mercados de imóveis no litoral,está indubitavelmente ligada ao nexo do ciclo de liquidez global e sua política monetária.

Agora, as autoridades chinesas estão lutando para recuperar o controle sobre uma economia desenfreada. Mas a solução é quase uma cópia carbono do método usado na última vez, no superaquecimento de 2004 - ajustes incrementais na política monetária e medidas administrativas com a finalidade de controlar os excessos do gasto com investimentos indústria por indústria.

O problema básico desse método é que tem sido superado pela escala - a dinâmica de crescimento da China é agora tão poderosa que seu antigo estilo de administração não pode conseguir a tração exigida para um controle macro eficaz. Dois alertas de superaquecimento em dois anos acentuam as armadilhas do atual método. E a medida mais recente de elevar as taxas de empréstimo bancárias em 27 pontos base (uma medida tomada em 27 de abril) e elevar as proporções de reserva requeridas em 0,5 ponto porcentual (uma determinação de 16 de junho) pode simplesmente não ser suficiente para conter os excessos impulsionados domesticamente do seu ciclo de empréstimos bancários. Da mesma forma que a continuidade dos ajustes de má vontade na sua política monetária podem não ser o bastante para conter os excessos impulsionados globalmente do seu ciclo de liquidez. Muito embora os bancos centrais estrangeiros estejam agora apertando, as expectativas da valorização do yuan continuam a direcionar influxos de capital para a China.

Em resumo, os efeitos em escala indicam que os mentores da política chinesa precisam fazer mais se eles querem ter sucesso em conter os excessos de sua economia ultra-aquecida. Em termos nominais, a economia está 35% maior do que era em 2004 - a última vez que as autoridades enfrentaram um problema semelhante. A experiência dos últimos dois anos - investimentos constantes e excessos de exportações, em conjunção com os aumentos nos preços da energia e de outros commodities industriais impulsionados pela China - ressalta as armadilhas do incrementalismo na orientação da estratégia de política macro de um China com uma economia mista. Temerosas de desencadearem um ciclo de altos e baixos se a política for apertada demais e preocupadas com os desequilíbrios que só podem aumentar se a continuar essa política de excessiva concessão de empréstimos, as autoridades chinesas foram pegas no meio.

As atuais circunstâncias da China clamam por uma atitude de maior aperto na política macro. Ao mesmo tempo, a mudança de um crescimento conduzido pelos investimentos e pelas importações para uma dinâmica de crescimento acionada pelo consumidor nunca pareceu mais urgente. Como proceder é uma resolução inteiramente da China - como equilibrar a mistura das suas políticas macro entre ajustes fiscal, monetário e de câmbio e em que ritmo fazer avançar as reformas. Mas quanto mais tempo a China evitar uma mudança mais significativa na restrição na sua política macro e quanto mais tempo depender dos investimentos e das exportações às expensas do consumo privado, maior a possibilidade do temido pouso acidentado.

* Stephen Roach escreve para o Morgan Stanley - Global Economic Forum