Título: 'Como demos um presidente, não vão mais nos perseguir'
Autor: Leonardo Torres
Fonte: O Estado de São Paulo, 25/06/2006, Internacional, p. A22

¿A coca é puro sacrifício. Nunca chega para tudo¿, diz Teófila Claros enquanto mistura as folhas com os pés, caminhando sobre a lona onde as colocou para secar. Ela leva nos braços Rebeca, de 2 meses, a mais novinha de seus cinco filhos. Conta que o marido dirige um caminhão que transporta frutas, e assim vão tocando a vida. A alguns quilômetros da casa de Teófila fica Vueltadero, povoado de 30 casas repartidas pelos dois lados do caminho. As crianças saem da escola e se aglomeram ao lado de um carrinho de sorvete.

Juan Cairo agarra o facão e guia até sua plantação. ¿Agora se pode plantar um pouco. Mas não vão nos perseguir mais porque o Chapare deu um presidente¿, vai dizendo. Para chegar, temos de cruzar um regato - um riachinho marrom onde Juan cruzou uma rede e cai algum peixinho de vez em quando. Não há canoeiro; é preciso se molhar. Do outro lado continua a trilha que Juan vai desbravando. Por fim chegamos à clareira, ou melhor, ao cato. Juan contratou dois colhedores para ajudá-lo. Pagam-se 10 bolivianos (pouco mais de US$ 1) por meio quilo de folhas colhidas.

Juan deixa os colhedores e volta para casa com a bolsa no ombro. Ali o esperam as filhas, Lourdes e Rosalia, e Margarita, a mulher, com tarefas múltiplas: espalhar a coca sobre a lona, descascar tomates. Os tomates, juntamente com a yuca (mandioca) e o arroz, se repetem na comida dos camponeses do Chapare.

Em Vueltadero há poucos táxis, mas todo habitante local com um veículo pode suprir o serviço, e Juan tem caminhonete. A caminho de Eterazama, onde está o mercado de coca da zona, fica Samuzabety, vilarejo onde justo neste momento gritam num alto-falante para alguém ir atender a um telefonema. Já devem estar vendo chegar o avisado porque logo depois param de chamá-lo. No caminho, volta e meia há um secador de folhas de coca e uma senhora que as espalha com uma vassoura, embaixo de um sol abrasador. A vereda da barbearia Ledezma não é exceção. Dentro do local, corta-se o cabelo, e a cada três cortes ganha-se um de graça. Com o cantor Ricardo Arjona olhando de um pôster, com Van Damme empunhando uma metralhadora terrível em outro, basta escolher um corte numa das fotos numeradas de revistas que cobrem as paredes. Ou, melhor ainda, em uma estampa com exemplos: o corte pode ser juvenil, galã, fantasia, ou egípcio. Nada mal o egípcio, no meio da selva boliviana.