Título: Uma viagem ao coração da coca
Autor: Leonardo Torres
Fonte: O Estado de São Paulo, 25/06/2006, Internacional, p. A22

Fruto evoluído, a tangerina: descasca-se com a mão e já vem em porções. Prodígio ideal para oferecer no meio da selva, e é isto que Juan faz, sorridente e sem dificuldade: em seu campo, milhares de tangerinas pendem das árvores insensíveis a outras tangerinas que, cansadas de ficar penduradas, apodrecem tristonhas no chão. Abundância é assim, mas agora, com uma boa provisão de frutas nos bolsos, seguimos em frente.

Estamos no coração do Chapare, e embora cultive tangerina, cebola, também um pouco de amendoim, Juan é, no fundo, um cocaleiro. Ele nos guia até sua plantação.

Como Juan, há 23 mil plantadores de coca autorizados no Trópico de Cochabamba. Com a região das Yungas, em La Paz, esta é uma das zonas geográficas da Bolívia onde se pode plantar e vender coca legalmente. Não é pouco. A situação atual custou anos de luta e muitos mortos. Mais de 300, pelas contas de um plantador que, partindo desta selva, chegou ao poder: o presidente Evo Morales.

Hoje se respira um clima de calma; ou, ao menos, uma trégua atenta. A pressão militar exercida durante anos a cavalodas políticas de erradicação forçada de cultivos está baixa. ¿Sempre haverá coca¿, repete Evo toda vez que fala do assunto em público. Mas não haverá coca livre: embora o presidente seja um deles, os plantadores por enquanto têm de se conformar com um cultivo de um cato, 40 metros por 40, e nada mais.

Mascando coca a gente se entende. Pode-se entrar na Província do Chapare por Cochabamba, uma cidade grande com uma linda avenida que tem outro nome, mas chamam de El Prado; um centro muito denso, com mercados cobertos, e, afastando-se um pouco, as canchas, como são chamadas por aqui as grandes feiras de rua onde se vende de tudo.

Vendem-se, por exemplo, camisetas para turistas com os dizeres ¿A folha de coca não é droga¿ ou - uma variante - ¿A folha de coca não é cocaína¿, cada uma com uma folha de coca estampada no peito. As folhas de verdade, crescendo nas plantas, secando à vista de todos na rua, logo as veremos na selva, sem ir muito longe.

Partindo de Cochabamba, a porta de entrada para a selva é Villa Tunari, uma localidade etnoecoturística - como a define o arco de boas-vindas no caminho - fundada em 1970. Antes era tudo mato. O caminho para Tunari (em rigor, o primeiro trecho da estrada que liga Cochabamba a Santa Cruz de la Sierra) é cheio de curvas com uma imprevisível sucessão de trechos asfaltados, lajotas e terra, mas com pedágio, claro. Um caminho maluco que se começa a percorrer com um dia excepcionalmente lindo e logo o dia fica gelado. Em seguida voltamos a ficar tranqüilos com as nuvens de novo em seu lugar habitual, o céu, mas agora sobra calor.

Tudo em menos de 170 quilômetros, onde, de tempos em tempos, surge um daqueles bares, os melhores que há, com uns tipos debruçados sobre uma sopa e as costas iluminadas pela luz fluorescente. A estrada tem seu ponto crítico em El Sillar, onde há um desvio para obras. Só se pode passar entre as 8 da noite e as 5 da manhã, e caso alguém não tenha calculado direito, instalou-se no desvio um sortimento de barzinhos.

Antes, muito antes do desvio, na saída de Cochabamba, fica Sacaba, cujo nome provém do principal mercado de abastecimento de folha de coca da zona. Sob um telheiro, realiza-se uma reunião importante. Debaixo da bandeira aborígine, está o vice-ministro Nacional da Coca, que trouxe um novo regulamento da atividade. ¿Sou um cocaleiro sofrido como vocês. Hoje somos governo e precisamos aprovar isto¿, dispara, com desejo de que tudo seja rápido.

¿Hoje somos governo¿ é incontestável: Evo Morales continua sendo o líder das Seis Federações do Trópico, a estrutura sindical que centraliza os plantadores do Chapare. Isto é motivo de regozijo para os cocaleiros, mas não quer dizer que na assembléia eles encurtem a discussão. É um debate com rostos severos, sentados sobre as bolsas de coca com uns 25 quilos. Há folhas nas bolsas e soltas sobre a mesa do vice-ministro, seus assessores e os dirigentes sindicais. Todos mascam no galpão; mascam também na porta, onde umas mulheres vendem favas fritas (tira-gosto boliviano) e sorvetes que sob o sol forte parecem uma opção melhor.

O Rio San Mateo, belo com suas pedras, abraça um povoado que acolhe cordialmente dezenas de mochileiros estrangeiros, mas cujo nome continua associado a um massacre: em 27 de junho de 1988, helicópteros com agentes americanos da luta antidrogas metralharam centenas de camponeses que se opunham ao uso de herbicidas para erradicar plantações de coca. Eles deixaram 12 mortos - entre os quais várias crianças - além de 20 feridos. Nós vamos atrás dos cocaleiros autorizados que sobrevivem com seu cato de 40 por 40. O destino é Bajo Mariscal, a cerca de 35 quilômetros pelos luxuriantes caminhos pedregosos da selva. Em Alto Mariscal há uma escola; em Bajo Mariscal, outra. Ao lado da escola, a sede do sindicato, nome que têm as comunidades agrárias de plantadores.

Evidentemente, há reunião; há sempre uma reunião de cocaleiros. Teodora Chura, 48 anos, de La Paz, e protagonista ¿de todas as lutas¿, é a referência no lugar. Julio Ortuño Rivera, seu marido, toca o quiosque-armazém-bar onde à noite se reúnem os cocaleiros. Muitos plantadores do Chapare eram desempregados que se radicaram no Trópico buscando um modo de subsistir. Julio nasceu no Chapare. ¿Há muitos anos tínhamos cultivo livre de coca. Mas não havia narcotráfico.¿ Agora, como produtor filiado à Federação do Trópico (uma ¿das Seis¿), ele pode explorar seu cato, que ocupa pequena parte de seu campo de 14 hectares.

Julio convida a conhecer o chaco, como ele chama o terreno. Depois de 600, 700 metros na mata, saltando algum córrego, entre palmeiras e uma nuvem de mosquitos impiedosos, ali estão enfim as plantas de coca. Julio também cultiva bixa (urucum), uma planta que dá frutos vermelhos que servem para fazer pinturas.

A coca é um meio de vida, mas não basta. Podem-se fazer três colheitas por ano e cada produtor junta uns mil dólares. Então, é preciso buscar alternativas.

As bandeiras tricolores do MAS (Movimento para o Socialismo) de Evo Morales aparecem por toda parte e não poderiam faltar no barzinho de Julio. Nem o pôster com a foto do presidente. ¿Até choramos no dia em que ele ganhou¿, afirma Julio, que só freqüentou três anos de escola e hoje tem seus filhos, dois meninos de 10 e 12 anos, num colégio alemão que oferece bolsas a alunos pobres.