Título: Amor duro
Autor: Renée Pereira
Fonte: O Estado de São Paulo, 13/06/2006, Economia & Negócios, p. B5

Depois de anos de excesso de condescendência, o Federal Reserve (Fed, o banco central dos EUA) pode estar tentando recuperar a imagem de durão necessária a uma autoridade monetária com credibilidade.

Faz bastante tempo que não digo nada positivo sobre o Fed. Isso me entristece. O Conselho - como os íntimos chamam o Conselho de Governadores do Fed, baseado em Washington - foi meu primeiro local de trabalho remunerado depois da pós-graduação. Passei sete anos maravilhosos no órgão na década de 70 e sempre haverá lugar em meu coração para esta grande instituição. Dói-me escrever sobre um Fed que se perdeu nas águas infestadas de

bolhas dos últimos sete anos. Mas agora, pela primeira vez em muito tempo, os EUA parecem prestes a receber uma dose significativa de disciplina monetária. Ironicamente, ela pode ser mais dura para os mercados que para a economia. Para os investidores, é um toque de despertar doloroso, sem dúvida.

No fim das contas, no entanto, é absolutamente essencial para dar à economia americana, desequilibrada e dependente de ativos, um curso mais sólido e sustentável. Três vivas para Ben Bernanke! Ele ainda não fez nada, é claro. O Fed poderia decepcionar - e ficar apenas no falatório sem ação. E sempre existe uma chance de ser tarde demais - de os desequilíbrios americanos estarem tão avançados que a única saída seja o temido pouso forçado.

Contudo, em meu novo papel de pessimista otimista, estou disposto a dar a Bernanke & Cia o benefício da dúvida. Falando duro no contexto de um excesso apenas fracionário da inflação - um excesso que pode ser mais estatístico que real -, o Fed envia uma mensagem inequivocamente clara de contenção de política. E, transmitindo esta mensagem no contexto dos mercados em baixa, a retórica da disciplina monetária soa ainda mais forte.

Se alguma vez foi hora de o banco central dos EUA tomar conta dos mercados, certamente é agora. O ex-presidente do Fed William McChesney Martin explicou da melhor maneira em sua tirada famosa: "O trabalho do Fed é tirar a poncheira justo quando a festa está ficando boa." Durante anos, o Fed forneceu mais que sua cota de reabastecimentos na maior festa de todas. Estes dias agora podem estar chegando ao fim.

Há poucas semanas, escrevi sobre uma crise de confiança na atividade do banco central - argumentando que uma profusão de bolhas de ativos era uma conseqüência cada vez mais perigosa de uma viagem bem-sucedida rumo à estabilidade dos preços.

Minha visão era que, em níveis baixos de inflação, a regra de política do banco central que estabelece metas de inflação resulta em taxas de juros nominais excessivamente baixas - a sustentação de um ciclo de liquidez em contínua expansão. Argumentei que a autoridade monetária na verdade precisa ampliar suas metas à medida que se aproxima da estabilidade de preços - dando especial atenção aos excessos que se acumulam nos mercados de ativos.

Realmente, a política monetária precisa ser conduzida com uma propensão assimétrica nessas circunstâncias - mais predisposta ao endurecimento que à acomodação. Isto tem implicações táticas importantes para o Fed: uma propensão ao aperto monetário com índices de inflação baixos bem pode ser essencial se o banco central dos EUA quiser ter sucesso cumprindo seu "duplo mandato" de estabilidade de preços e crescimento econômico sustentável.

Minha leitura da agora infame declaração de Bernanke em 5 de junho é que ele entende isto. Seu lamento sobre a inflação na verdade parece exagerado no contexto da desaceleração que ele agora espera para o crescimento econômico dos EUA.

De fato, sua declaração se esforça para falar de uma transição para um crescimento mais lento resultante da combinação entre os preços da energia mais altos e um resfriamento do mercado imobiliário. Ao mesmo tempo, sua preocupação com a inflação também parece em conflito com alguns ardis estatísticos óbvios nos dados do preço agregado.

Sim, o núcleo do índice de preços ao consumidor ficou em 2,3% em maio, em relação ao mesmo mês do ano passado - nas palavras reveladoras de Bernanke, "no teto ou acima do teto do âmbito que muitos economistas, eu incluído, considerariam compatível com a estabilidade de preços e a promoção do máximo crescimento a longo prazo". O excesso, no entanto, deve-se inteiramente ao notório "aluguel equivalente do proprietário" de residências principais; excluindo-se esse item fundamental - 30% do núcleo do IPC -, o núcleo teria sido de 2% em abril em relação ao mesmo mês do ano passado (e, na verdade, 1,9%, excluindo-se inteiramente a categoria do abrigo).

É discutível se o alarme da inflação teria sido acionado não fosse por essa aceleração estatística num dos componentes mais controversos do IPC. E, é claro, deve-se considerar o clima do mercado financeiro - uma correção já significativa nos mercados globais de ações e um declínio particularmente acentuado em ativos arriscados como os mercados emergentes e as mercadorias. Num clima ainda de inflação baixa, um Fed avesso ao risco poderia ter sido tentado a esperar até que a poeira assentasse nos mercados antes de exibir sua força política.

A conclusão de Bernanke de que houve uma "indesejada" deterioração da inflação também pode ser questionada com outros argumentos. O aumento fracionário do índice do salário por hora em maio (0,1%) joga água fria na noção de que mercados de trabalho comprimidos estão elevando o preço do trabalho. Ao mesmo tempo, a recente e acentuada correção nos preços das mercadorias põe em questão a crença de que o crescimento global em ascensão está levando a um boom coincidente nos preços dos insumos que poderia exacerbar ainda mais as pressões inflacionárias incipientes.

E, numa base estrutural, as atuais pressões de globalização continuam a atuar como forças contrárias poderosas restringindo quaisquer pressões cíclicas que se acumulem na frente da inflação. Finalmente, deve-se considerar uma questão política tática: com índices de inflação baixos, o banco central rígido que estabelece metas de inflação tem margem para cometer um pequeno erro de política; ele pode, de fato, se atrasar e intervir depois do evento com um aperto monetário - sofrendo as conseqüências do que deveria ser apenas um breve desvio na estrada para a estabilidade de preços.

Em resumo, haveria razões de sobra para Bernanke optar por esperar a passagem deste chamado susto inflacionário. Mas ele não esperou. Na verdade, ele entrou cedo no jogo, e esta mensagem tem sido reforçada por um assalto retórico coordenado por parte de outros membros do órgão responsável pelas políticas do Fed.

Talvez eu esteja enxergando, mas creio que há uma implicação importante na resposta instantânea do Fed a um susto inflacionário discutível: depois de anos de excesso de condescendência, o Fed pode estar tentando recuperar a imagem de "durão" necessária a uma autoridade monetária com credibilidade. E há boas razões para acreditar que este sentimento tem alcance global. Apertos monetários recentes por parte do Banco Central Europeu e bancos centrais da Índia, Coréia, Turquia, África do Sul e até mesmo Islândia mostram uma tendência de disciplina similar.

Este surto de disciplina monetária ao redor do mundo encaixa-se perfeitamente a meu novo otimismo sobre o reequilíbrio global. O maior desequilíbrio do mundo - o atual déficit em conta corrente dos EUA - é conseqüência direta de uma escassez de poupança baseada na renda induzida pela bolha imobiliária. Carentes de poupança doméstica, os EUA precisam importar poupança excedente do exterior a fim de crescer - e administrar grandes déficits em conta corrente e comércio a fim de atrair capital estrangeiro.

Na medida em que os bancos centrais promoveram desequilíbrios globais relacionados a bolhas de ativos com políticas monetárias excessivamente condescendentes, uma nova tendência rumo à disciplina monetária é um evento bastante encorajador no caminho rumo ao reequilíbrio global.

Embora seja "amor duro" para os investidores atingidos, isto bem pode acabar sendo a correção necessária para preparar o terreno para a próxima alta nos mercados.

Obrigado novamente, Ben Bernanke

*Stephen Roach escreveu para o Morgan Stanley- Economic Forum de Cap D'Antibes, França