Título: A Alca não é mais uma opção
Autor: Rubens Barbosa
Fonte: O Estado de São Paulo, 13/06/2006, Espaço Aberto, p. A2

O Mercosul é nosso destino e a Alca, nossa opção já foi a doutrina oficial. Hoje o destino é incerto e a opção deixou de existir.

Teria sido melhor para o Brasil negociar a área de livre comércio hemisférica, ao invés de ajudar a inviabilizá-la?

Autoridades norte-americanas, em recentes reuniões na Fiesp, deixaram claro que os EUA só terão interesse em retomar os entendimentos da Alca, com vista a concluir um acordo de livre comércio (ALC) hemisférico, se o modelo for o do Nafta, isto é, o dos acordos firmados com Canadá e México e, ultimamente, com os países centro-americanos (Cafta) e com a Colômbia e o Peru, na Comunidade Andina de Nações. O que significa negociar um acordo de livre comércio nos moldes do Nafta?

A aceitação de acesso limitado ao mercado dos EUA pela imposição de cotas e outras restrições tarifárias (picos tarifários) e não-tarifárias para produtos considerados sensíveis pelas autoridades norte-americanas;

a exclusão do exame das normas de antidumping e subsídios, remetido à Rodada multilateral de Doha;

inclusão de regras e marcos regulatórios que vão muito além das obrigações que o Brasil já assumiu na OMC e, em diversos aspectos, tolhem a capacidade do governo de respaldar medidas de apoio ao desenvolvimento.

Em investimentos, os acordos consagram a eliminação de requisitos de desempenho, inclusive de exportação, e o acesso ao mercado sem presença comercial - ou seja, empresas americanas poderiam ter acesso a esses mercados sem precisar fazer nenhum investimento local.

Em solução de controvérsias se aceita o questionamento do Estado pelo investidor, segundo o qual o investidor privado de ambas as partes tem o direito de iniciar ação legal contra o governo hospedeiro, caso julgue que tenha ocorrido violação das obrigações assumidas no acordo de investimentos ou mesmo de autorização de investimento.

Em propriedade intelectual, os dispositivos dos ALCs ampliam a base de proteção estabelecida pela OMC em TRIPs: aumentam os prazos de proteção, incorporam novas categorias de objetos protegidos e introduzem disciplinas para cumprimento e fiscalização das obrigações legais. Quanto a normas ambientais e trabalhistas, os países se comprometem a adotar altos níveis de proteção interna, o que em si é positivo, mas, por outro lado, se obrigam a aceitar a vinculação do eventual descumprimento a sanções comerciais ou multas (de pelo menos US$ 15 milhões).

Os países membros do Mercosul não têm nenhum regime preferencial consolidado negociado com os EUA (o SGP é um regime de preferências concedido pelos países desenvolvidos a empresas dos países em desenvolvimento) e, por isso, não têm incentivo maior para fazer concessões importantes sem obter ganhos concretos em acesso a mercado no maior mercado do mundo.

Com a crescente onda protecionista do Congresso norte-americano, tornar-se-ia muito difícil negociar um acordo equilibrado do Brasil-Mercosul com os EUA, pois, nas áreas de interesse dos setores afetados pelas restrições, os grupos de pressão nos EUA não permitiriam nenhuma concessão.

Por outro lado, na prática, o fim da vigência, em julho de 2007, do Trade Promotion Authority (autorização do Congresso para o Executivo negociar acordos de comércio) torna inviável a negociação de um acordo de livre comércio com o Brasil ou com o Mercosul antes das próximas eleições presidenciais norte-americanas.

Pelas dificuldades domésticas e externas nas negociações com o Mercosul, o governo de Washington parece ter perdido o interesse em levar adiante a negociação da Alca. Por outro lado, o governo brasileiro, sem a perspectiva de ganhos concretos nos produtos que estão afetados pelas atuais medidas restritivas (aço, calçados, têxteis, camarão, etanol, sucos, fumo, açúcar e outros), também se desinteressou de avançar as negociações, nos termos propostos pelos EUA.

Quais as conseqüências para o Brasil da não-negociação da Alca, do ângulo comercial?

As exportações brasileiras pouco ficarão afetadas, visto que 68% das importações feitas pelos EUA entram com tarifa zero ou muito próxima de zero. Poderá haver desvio de comércio e perda da competitividade dos produtos brasileiros pela margem de preferência mais favorável concedida por México, Chile, Colômbia e Peru aos EUA em relação aos acordos firmados por esses países com o Mercosul.

Em resumo, uma análise realista da situação atual das negociações hemisféricas deve levar em conta:

A impossibilidade de negociar um acordo equilibrado e reciprocamente vantajoso, baseado no modelo Nafta;

as dificuldades políticas no Congresso norte-americano para negociar um acordo comercial importante com o Brasil-Mercosul;

o avanço dos acordos bilaterais que os EUA estão assinando com os países do Hemisfério;

e a perspectiva de a Rodada de Doha terminar, na melhor das hipóteses, com resultados comerciais pouco significativos do ponto de vista dos países em desenvolvimento, inclusive o Brasil, pela pouca disposição dos países desenvolvidos, em especial os EUA e a União Européia, de fazerem concessões mais amplas no tocante ao acesso a mercados, ao apoio doméstico e a subsídios para exportação;

a inclusão da Venezuela como membro pleno do grupo sub-regional pode ser fator de inviabilização de acordo de livre comércio do Mercosul com os EUA, dentro ou fora do contexto da Alca.

O que importa agora é como defender o interesse comercial do Brasil, num quadro negocial negativo. De imediato, propor a abertura de negociações com os vizinhos para obter, pelo menos, a equalização das tarifas concedidas aos EUA. Até o final do ano, iniciar, com a participação do setor privado, a discussão ampla, aberta, transparente, despolitizada de uma nova estratégia para as negociações comerciais, tendo como foco os reais interesses do Brasil no Mercosul e nas relações econômicas com os EUA.

Rubens Barbosa, presidente do Conselho Superior de Comércio Exterior da Fiesp, foi embaixador nos EUA e na Grã-Bretanha